John Travolta define-se como ator em reinvenção
Convidado do Festival de Cannes para uma projeção especial de Grease (o filme de Randal Kleiser está a celebrar 40 anos!), John Travolta participou numa das tradicionais masterclasses do certame. Aliás, este ano, porventura para favorecer um tom informal, o delegado geral Thierry Frémaux preferiu falar de um "encontro". Até porque, nas suas palavras, se estava perante alguém que "não é preciso apresentar".
Num festival em que já se cruzaram muitas memórias (incluindo a cópia restaurada, em 70mm, de 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick), Travolta evocou o seu trabalho com cineastas como Brian de Palma (Blow Out, 1981) e Quentin Tarantino (Pulp Fiction, Palma de Ouro de 1994), sublinhando que sempre filmou com regularidade e nunca se sentiu afastado da profissão. Daí que encare com ironia o facto de, ciclicamente, alguma imprensa falar do seu comeback, já que nunca se foi embora: "A não ser que falem de um comeback permanente, uma vez que procuro reinventar-me constantemente. Alias, é isso que explica porque escolhi esta profissão: a possibilidade de uma constante reinvenção."
Menos noticiado do que a presença de Travolta, embora não menos sedutor, foi o regresso de Romain Goupil, precisamente alguém que se tornou conhecido através de Cannes quando, em 1982, com Mourir à 30 Ans, evocando as suas vivências em maio de 68, arrebatou a Câmara de Ouro (melhor primeira obra). Agora, através de La Traversée, apresentado numa sessão especial, Goupil propõe-se observar como está a França, meio século depois das barricadas de maio e da revolta contra o impasse do sistema político.
O filme é mesmo uma travessia protagonizada por outra figura emblemática de Maio, Daniel Cohn--Bendit, filmado como testemunha e repórter de uma França de muitos contrastes - desde uma conversa de café com o presidente Macron até um encontro com votantes da Frente Nacional, passando por uma curiosa visita ao Parlamento Europeu.
Parábola bíblica
Entretanto, em vésperas de atribuição da Palma de Ouro (amanhã, ao fim da tarde), proliferam as tradicionais especulações sobre os favoritos. Títulos como Leto, do russo Kirill Serebrennikov, ou BlacKkKlansman, do americano Spike Lee, são citados por muitos jornalistas, mas convenhamos que a experiência ensina que o júri oficial raras vezes confirma as expectativas da imprensa.
Seja como for, não será arriscado supor que o muito aguardado Dogman, do italiano Matteo Garrone, veio baralhar as contas. Há no filme um misto de crueza realista e apelo trágico que, além do mais, o reinscreve numa nobre tradição do cinema de Itália. Isto sem esquecer que, em Cannes, Garrone já ganhou duas vezes o Grande Prémio (o segundo na hierarquia do palmarés): com Gomorra e Reality, respetivamente em 2008 e 2012.
Dogman é uma história de inocência e culpa, transparência e traição, centrada no mais insólito dos anti-heróis: Marcello (notável Marcello Fonte) gere uma loja de recolha e tratamento de cães, numa zona degradada, marcada pelos roubos de Simoncino (Edoardo Pesce), figura de uma agressividade brutal, dependente da cocaína que lhe é fornecida pelo próprio Marcello...
Tal como em Gomorra, Garrone parece convocar algumas matrizes do policial, eventualmente do filme de gangsters. O certo é que ele não é um "ilustrador" de géneros cinematográficos, antes alguém que elabora os filmes a partir da inusitada complexidade de personagens só na aparência banais. No limite, Dogman é uma parábola bíblica sobre as convulsões do Bem e do Mal, e não será uma surpresa se o filme integrar o palmarés a atribuir pelo júri presidido por Cate Blanchett.