Joaquim Guerreiro, o primeiro doente a receber um fígado de dador de coração parado

Primeiro, eram os transplantes com órgãos de doentes em morte cerebral, depois evolui-se para os dadores vivos e agora já há os dadores de coração parado. Equipa da unidade de transplantes do Curry Cabral fez o primeiro transplante de fígado deste género. Equipa de São José tornou-o possível.
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Voltou a casa há 15 dias. Já vai à horta de manhã e ao fim da tarde, e não vai mais porque lá em casa ninguém o deixa abusar. "Para não os ouvir, tenho de cumprir à risca o que os médicos me disseram", afirma ao DN Joaquim Guerreiro, lançando uma gargalhada.

Sente-se bem, não tem dores nem outros sinais que o apoquentem, apesar do transplante que fez. "Apenas não consigo dormir", desabafa. "Quando voltar à consulta terei de dizer isto à doutora", ri-se. "Nunca fui assim e agora parece que o cérebro não pára durante a noite. Está sempre a funcionar. Já viu isto?"

A máscara no rosto, para proteger o sistema imunitário de algo mais agressivo, não a tira sempre que sai à rua. "Sei que tem de ser assim, porque o meu organismo está fraco. Os médicos avisaram-me que não podia estar em contacto com muita gente". Por isso, quando chegou ao Rosário, em Almodôvar, Alentejo, depois da alta dada pela equipa que o operou no Hospital Curry Cabral, teve de avisar todos os amigos, companheiros, vizinhos, que se preparavam para o ir visitar, que não o podiam fazer.

"Tive de fazer um comunicado no Facebook a pedir que não viessem cá a casa. Sabe, no Alentejo gostamos muito de nos ajudar uns aos outros e se não os avisasse tinha sempre a casa cheia", explica Joaquim Guerreiro, o primeiro doente em Portugal a receber um fígado de dador de coração parado.

Aos 67 anos, este alentejano, a quem foi detetado há anos um nódulo no fígado e que aguardava há algum tempo um transplante, estava longe de imaginar há um mês que a sua vida estaria nas mãos de alguém a quem o coração deixou de bater, e que não foi possível salvar.

À pergunta do DN, se tinha alguma informação sobre o dador, respondeu prontamente: "Não senhora. Vi apenas no relatório médico que trouxe para casa que era uma pessoa jovem. E mais não quis saber. Foi alguém que me ajudou, e certamente que eu um dia também poderei ajudar alguém. É assim a vida".

Joaquim Guerreiro está agora sujeito a uma vigilância apertada. De 15 em 15 dias vem a Lisboa às consultas, na Unidade de Transplantes do Curry Cabral, onde foi operado e onde é acompanhado há três anos. "Desde que aqui entrei nunca mais senti medo da doença que tinha, confiei sempre nos médicos que me têm tratado", afirmou ao DN dias depois da cirurgia do transplante.

No dia em que lhe perguntaram, "temos um fígado compatível, aceita?", Não teve dúvidas em dizer que sim. Arranjou-se e veio com a mulher do Rosário até à capital. Em pouco mais de duas horas chegaram ao hospital. Ele foi preparado e entrou no bloco operatório. Mas o que não sabia é que antes de lhe comunicarem a novidade, que havia um fígado para ele, já uma equipa do INEM tinha ido para o terreno, tentar salvar um doente a quem o coração deixou de bater, devido a uma paragem cardiorrespiratória.

Joaquim desconhecia este trabalho prévio de uma equipa pré-hospitalar e depois de toda a equipa da Unidade de Urgência Médica de São José, que tentou todas as manobras de reanimação, incluindo ligarem-no à máquina que iria substituir o coração e que iria funcionar como se fosse um coração artificial, mas que não resultou. O doente não reagiu. E nada mais havia a fazer.

ECMO permite a colheita de órgãos em boas condições, mesmo quando há morte cardíaca

"Quando um doente tem uma paragem cardiorrespiratória são feitas todas as manobras de reanimação e temos de perceber se o doente tem um ritmo que é ou não compatível com a vida. Se não tem, passados mais de 30 minutos, que é o que a lei determina, paramos tudo, deixamos o doente quieto e vamos avaliar o pulso do doente, os sinais de vida, respiração etc. Se durante mais dez minutos não há sinais de nada disso então consideramos que o doente está em morte cardíaca", explica ao DN o Médico intensivista Philip Fortuna, da UUM do Hospital de São José e coordenador do programa ECMO - Extra Corporeal Membrane Oxygenation - a máquina que consegue recuperar corações que deixaram de bater ou que, quando nada há fazer, permite manter os órgãos, como fígado, pulmões e rins em boas condições, para serem transplantados e salvar outras vidas.

Philip Fortuna explica: "Se o doente não reage é feita uma prova de morte, e se é provado que o doente não tem recuperação, ou que aquele coração já não é possível recuperar, então desencadeia-se o processo de doação e de colheita. O corpo é ligado à ECMO para se continuar a fazer a chegar a circulação aos órgãos, mas é preciso agir muito rapidamente porque a máquina dá suporte de vida, mas não substitui todas as funções cardíacas."

Foi isso que aconteceu naquele dia em que Joaquim Guerreiro veio à consulta a Lisboa e voltou ao Rosário à hora de almoço. Nada fazia prever o desfecho que teve: o do transplante. O doente que teve paragem cardiorrespiratória não reagiu e a equipa médica da UUM de São José considerou que o doente poderia ser dador. Informou a equipa de transplantes do hospital e iniciou o processo de doação e de colheita. O Hospital Curry Cabral, onde está sediado o Centro de Referência de Transplantes do Centro Hospitalar de Lisboa Central, foi informado e uma equipa de cirurgiões dirigiu-se a São José para participar na cirurgia de colheita de órgãos. Foram retirados o fígado e os pulmões, que foram transplantados em doentes que "estão a evoluir muito bem", explicaram ao DN.

Até agora, em Portugal, ainda não tinha sido possível um transplante de fígado de dador de coração parado. Américo Martins, coordenador da Unidade de Transplantes de Fígado do Curry Cabral, contou ao DN que já tinha havido outras tentativas, mas não resultaram, por ser um processo de colheita muito exigente.

"Este foi o primeiro transplante de fígado. O Hospital Santo António, no Porto, já tinha feito três ou quatro colheitas de órgãos para tentar o transplante e não o fez porque não foi possível aproveitar os órgãos. A nossa equipa também já fez uma colheita em Santa Maria e não realizou o transplante, por se considerar que o órgão já não estava em condições", sublinha.

A diferença entre um dador cadavérico, em morte cerebral, e de coração parado é que no primeiro caso podemos esperar o tempo necessário, até um dia ou dois, para recolher os órgãos, só o cérebro deixou de funcionar e todas as outras funções cardíacas e de circulação sanguínea continuam ativas. No segundo caso, há que agir rapidamente, porque o coração está sem funcionar e é preciso ter a certeza que os timings de reanimação para a colheita ocorrer não foram ultrapassados e que a circulação sanguínea continuou a ser feita junto dos outros órgãos.

Um caso que foi uma sorte

Neste caso, "foi uma sorte. Acabou por surgir um doente que não foi possível salvar e um médico de São José teve a capacidade de perceber que havia órgãos que poderiam ser colhidos, porque estavam em boas condições. E com base nisso iniciou-se todo o processo de colheita. Uma equipa do Curry foi para São José e não só os órgãos estavam em boas condições, como tivemos um recetor, que estava em lista, que foi capaz de estar rapidamente na unidade, para que os tempos isquémicos, muito importantes num programa de transplantes, não fossem demasiados e que a cirurgia fosse realizada com sucesso", conta Raquel Mega, uma das médicas que participou na história de Joaquim Guerreiro.

"A exigência num processo de transplante por dador de coração parado é grande e tem a ver com a rapidez com que temos de agira. Todas as equipas que participam neste processo têm de estar bem preparadas", argumenta a cirurgiã.

Este método de transplante exige igualmente uma grande logística, envolvendo equipas extra-hospitalares como intra-hospitalares, desde a reanimação à colheita dos órgãos e até à colocação no recetor. Segundo disseram ao DN, neste momento, e ao nível da ação extra-hospitalar, todas as viaturas de emergência médica estão equipadas com o material necessário para se fazer as manobras de reanimação ao doente, com compressores automáticos e não manualmente.

Mas há que ter todos os cuidados, até porque "o dador de coração parado é um pouco mais instável que o dador cadáver, estando mais sujeito a poder colapsar. Ou seja, a deixar de ter capacidade para ser dador. Por isso, é necessário ter uma equipa capaz de fazer uma colheita de forma precoce e atempada", explica a médica de 47 anos, que fez o seu internato de cirurgia em São José e que desde 2005 integra a equipa de transplantes do Curry Cabral na área do fígado.

Para Joaquim Guerreiro, ou para outro recetor, é indiferente se o dador é de morte cerebral ou de coração parado. "O importante é que se conseguiu que alguém que "estava em lista de espera, que via as suas hipóteses a diminuir e que foi salvo, passou a ter melhor qualidade de vida", salientam os médicos.

Portugal é dos países que ocupa uma posição privilegiada na lista de dadores. Basta referir que relativamente à doação de fígados está em sexto lugar. O sistema é universal e todos nós somos dadores, a não ser que o digamos que não. "Temos bastantes dadores em relação a outros países da Europa e até aos EUA, mas há sempre recetores em lista, e quanto mais tempo estiverem à espera mais complicada se torna a sua vida. Portanto, todas as medidas que possamos tomar para se conseguir mais dadores, e órgãos disponíveis com qualidade, são válidas, pois estamos a tratar melhor os nossos doentes", argumenta Raquel Mega.

Neste momento, tal já é possível graças ao programa ECMO, que começou como um projeto-piloto no Norte, em 2016, permitindo ao Hospital São João fazer transplantes de rins, com dadores de coração parado. Em 2017, o programa chegou a Lisboa e aos hospitais São José e Santa Maria.

"É uma área em que devemos continuar a investir", sublinha o diretor da Unidade de Transplantes do Curry Cabral da área do fígado. "Em Espanha, cerca de 20% dos transplantes realizados já são de dadores de coração parado. Mas eles começaram este programa há 10 anos e já fazem transplantes de rins, fígado, pulmão e até pâncreas. Em casos muito excecionais já houve equipas que colheram até o coração que parou num doente, mas que transplantado para outro refuncionou."

Américo Martins, de 67 anos, foi um dos especialistas que participou no grupo de trabalho que teve a seu cargo a legislação sobre este método de salvamento e de recolha de órgãos. "Foi elaborado um projeto legislativo que foi aprovado pela Assembleia da República que regulamenta todo este nosso trabalho, que beneficia os doentes que sobrevivem e os que podem ser transplantados, quando já não é possível fazer nada".

Na unidade que dirige todos os anos são feitos 130 transplantes de fígado, a maioria de dador em morte cerebral, mas a medicina evolui e também já fazem há tempos transplantes de dadores vivos e agora começa a era dos dadores de coração parado.

Joaquim Guerreiro já veio à primeira consulta de controlo após a alta. Tudo está a correr bem. Mas sabe que os próximos meses são de vigilância apertada. Ele não esquece que teve uma segunda oportunidade e "muita gente boa a tratar de mim".

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