Joaquim Gomes: "O ciclismo é uma grande aventura"

Durante 17 anos pedalou no pelotão nacional. Venceu duas Voltas a Portugal e um infindável número de outras provas. Aos 37 anos abandona a competição e prepara-se para voos mais altos com a criação do Lisboa Clube de Ciclismo
Publicado a
Atualizado a

DN- Apenas duas Voltas a Portugal ganhas durante uma carreira de 17 anos não sabe a pouco?

Joaquim Gomes: Não, de forma alguma. Apesar de em determinadas alturas da minha carreira eu achar que poderia vencer a Volta, mas por acidentes vários, nomeadamente quedas - e algumas bem graves - na Serra da Estrela, isso não sucedia. Aí sim, sentia-me bastante frustrado.A partir do momento que venci a primeira Volta comecei a perceber que o ciclismo é uma modalidade diferente de todas as outras.Além de um desporto, o ciclismo é também uma grande aventura, onde tudo pode acontecer. Não basta ser o melhor, tem que se ter sorte, tem que se estar atento. Há um sem número de factores que podem fazer com que um ciclista que tem condições de terminar nos cinco primeiros, acabe nos cinco últimos. Muitas vezes as pessoas diziam-me: «Ganhaste duas Voltas, mas podias ter vencido mais». Sabe o que é que eu respondo? Pois é, mas também poderia não ter ganho nenhuma! No ciclismo, já não digo que é preciso ter muita sorte; é essencial que não existam muitos azares....

Apesar de «apenas» duas vitórias na Volta você é um ciclista carismático.

O que marcou mais a relação entre o público e o Joaquim Gomes corredor foi não só o facto da longevidade, mas essencialmente a forma como eu surgi. Aconteceu em 1985, era eu um miúdo com 19 anos e corri a Volta a Portugal integrado numa selecção. Era a oportunidade derradeira para eu entrar no profissionalismo.Aliás, nesse ano eu deveria deixar de correr.

Porquê?

Porque o ciclismo não dava as oportunidades que dá hoje, não se praticavam os vencimentos que se praticam na actualidade e, depois, um miúdo de Lisboa, a quem o profissionalismo não seduzia e as portas também não se lhe abriam...

A selecção salvou a situação e deu um campeão...

Foi uma grande oportunidade. Eram três selecções, uma do Norte (onde sobressaía o falecido José Santiago), outra do Centro (onde estava eu) e uma do Sul (onde se destacava o inglês Cayn Theakston).Foi engraçado, a inclusão destas três selecções foi muito criticada pelas equipas, porque diziam que nós nem sabíamos andar de bicicleta, que ao terceiro ou quarto dia já estaríamos todos em casa, mas nessas selecções estiveram dois futuros vencedores da Volta a Portugal . Eu e Cayn Theakston.

Em que lugar terminou?

Não terminei. Desisti. Tive uma paragem de digestão, em Macedo de Cavaleiros. Mas o que ficou de importante foi o facto de um miúdo de 19 anos, na etapa rainha da Volta, na Serra da Estrela, ter arrancado serra acima, sozinho. Só o Venceslau Fernandes, na altura o melhor trepador do pelotão, é que me conseguiu acompanhar e chegar comigo - isolados - em Manteigas.

Um deslumbramento....

Nem lhe digo nada. No dia seguinte era o herói nacional. As pessoas gritavam o meu nome na estrada e isso para mim tornou-se inesquecível.Não imaginava que pudesse suceder uma coisa daquelas comigo.Mas tão importante como isso foram os convites que surgiram.O Lousa queria-me, o Sporting também. Aliás, na altura quase todas as equipas me queriam nos seus plantéis.

A ideia de não correr mais foi posta de parte?

Logo. E não podia ser de outra forma. Quando surge uma equipa (o Sporting) a oferecer-me um ordenado igual ao que o meu pai e a minha mãe juntos ganhavam aceitei logo. Pelo menos queria fazer uma experiência. Não podia deitar fora a hipótese de correr ao lado de Alexandre Ruas, Marco Chagas e de outros dos melhores nomes do ciclismo da altura.

E foi para Alvalade...

Sim, durante dois anos. Depois a equipa acabou e fomos todos para Vale de Lobo, onde vencemos a Volta a Portugal .

A Serra da Estrela deu-lhe fama, mas a sua relação com ela foi sempre de amor-ódio...

É uma relação mãe e filho. Lá fiz coisas extraordinárias, mas também vivi situações verdadeiramente aflitivas.

O seu calcanhar de Aquiles foram sempre as descidas da Serra...

Vamos ver uma coisa. O que se passou comigo é que quando se desce e se aborda uma curva a 80 km/h e quando se percebe que não se vai conseguir dar essa curva....e de facto se cai, isso obriga-nos a pensar que o ciclismo é um desporto muito bonito, mas de um momento para o outro estamos sujeitos a ir desta para melhor.

Agora com o arrumar da bicicleta não acha que lhe falta algo?

Claro que sim. Muitas vezes a bicicleta servia como um escape.

Nunca apostou numa carreira internacional, porquê?

Surgiram-me convites e de grandes equipas, mas o problema é que havia uma grande difrença entre o ciclismo que se praticava no estrangeiro e o que se praticava cá dentro. Isso fez-me ter sempre algum receio. Apesar de eu não ter problemas em correr com os estrangeiros. Aliás, ganhava-lhes, o que surpreendia os directores desportivos das equipas. Os convites surgiam, e eu conseguia tirar proveito disso, porque não partia para um mundo completamente desconhecido para mim, e acabava por conseguir ganhar financeiramente cá dentro o mesmo que poderia ganhar lá fora.

Apostou sempre numa situação cómodo....

Foi. Claro que para mim acabou por ser negativo. O meu aspecto mais comodista acabou por prevalecer sobre aquilo que seria mais lógico fazer em termos de percurso desportivo. Mas foi assim...

Qual foi o momento mais alto da sua carreira?

Foi sem dúvida quando terminei o contra-relógio da Volta a Portugal de 1989 e me sagrei vencedor da prova. Era o concretizar de um sonho que vinha desde miúdo. E depois a forma como consegui superar todas as dificuldades de uma corrida com três semanas de duração, cheia de dificuldades...

E o pior?

Uma das quedas na Serra da Estrela. Mais concretamente aquela que me tirou a possibilidade de vencer a Volta pela primeira vez e logo ao serviço de uma grande equipa, como era o Sporting. Mas houve outros momentos maus.

O ciclismo português evoluiu nos últimos anos. Evoluiu o bastante?

Houve um sem número de factores para que essa evolução se desse.E tinha de ser. Não havia hipóteses de ser de outra forma, sob pena de as equipas terminarem - aliás, foi o que sucedeu com algumas. As mais fracas não se aguentaram, com a vinda de boas equipas a Portugal. Depois os patrocinadores começaram a ver que o ciclismo era um bom veículo publicitário, investiram mais, recorreu-se à contratação de bons ciclistas estrangeiros - alguns de grande nível. E até a passagem pelo pelotão, algo airosa, da equipa do Benfica, que levou mais público à estrada, deixou marcas positivas.

E até temos uma equipa na I Divisão Internacional, no caso concreto a Maia/Milaneza.

Sim, mas a equipa do Maia tem um investimento igual (perto de 300 mil contos) - exceptuando a LA Pecol, que tem um orçamento de 200 mil - ao conjunto das outras equipas do pelotão nacional.

O Maia tem a estabilidade chamada autarquia...

Desde o nascimento da equipa. Mas falta-lhe um aspecto importante: a formação. Uma equipa que tem 300 mil contos não consegue desviar 20 ou 30 mil para a formação? Claro que quando se fala em formação, os homens de negócios, que são quem entra com o dinheiro para os patrocínios, perguntam logo pelo retorno daquele investimento e isso é complicado.

Apesar de muitas contigências, o ciclismo tem futuro?

Acredito que sim. E depois o ciclismo continua a ser aquele desporto que vai até à casa das pessoas. E também não é daquelas modalidades que têm grandes buracos financeiros. Há pouco, gasta-se pouco, há muito... Não há, fecha-se a porta.

«O LCC está parado à espera da Câmara»

O Lisboa Clube de Ciclismo vai para a estrada, ou não?

O trabalho de casa está bem feito. Aliás, extremamente bem feito.Ao longo do País toda a gente sabe que existe o Lisboa Clube de Ciclismo (LCC), que o projecto tem a ver comigo, que pretende arrancar com uma equipa profissional, só que neste momento em termos de palpável não temos nada. Porque a Câmara Municipal de Lisboa (CML), que tem um compromisso para connosco, por diversas circunstâncias não tem conseguido cumprir. Nesta fase, em que acredito que ainda é possível surgir no próximo ano com uma equipa profissional, estamos a mudar um pouco de estratégia. Enquanto pensámos que seria melhor esperar uma definição da CML, saber até que ponto a edilidade poderia apoiar o projecto e depois arrancar para completar tudo aquilo que gostaríamos de pôr na estrada, com o apoio de potenciais patrocinadores, agora vamos tentar trabalhar ao contrário. Procuraremos conseguir apoios, independentemente da CML. Mais tarde, já com os apoios camarários, avançaremos com a vertente formação.

Mantêm a confiança no projecto?

Claro, as pessoas têm-me feito sentir que acreditam no projecto, querem que ele possa singrar. Mas o que é certo é que em termos práticos ainda não se conseguiu nada.

O projecto LCC nasceu no mandato de João Soares...

Eu não quero acreditar que o projecto não avance por causa disso...

Já falou com Pedro Santana Lopes?

Por enquanto não. Apenas reunimos com o responsável pelo pelouro de Desporto da CML, que disse ser o projecto superinteressante, abrangente. Depois, ao colocarmos o Benfica, o Sporting e o Belenenses como parceiros isso acabou por valorizar e ajudou a passar a mensagem. Agora resta que os apoios surjam, para que as ideias passem à prática.

Qual é o seu papel no LCC?

Depende das proporções que o projecto possa tomar. Se inicialmente só possamos surgir com a equipa profissional, então assumirei o cargo de Director Desportivo dessa equipa; se conseguirmos pôr por completo o projecto na sua totalidade em andamento, com escolas de ciclismo, organização de provas, aí assumirei um cargo que poderei chamar de coordenador geral e terei de encontrar um director desportivo para assumir a liderança da equipa profissional.

Quer ter equipa já em 2003?

Claro.

Quem são os atletas?

Ainda não há nomes. Vou estar dependente daquilo que restou, dos ciclistas que não foram contratados pelas outras equipas. Felizmente para mim, mas infelizmente para o ciclismo, restou muito. Porque o meu grande objectivo para a próxima época é tentar criar uma estrutura forte, e quando falo em estrutura refiro-me a mecânicos, massagistas, frota automóvel, etc.

Isso exige investimento elevado.

Numa primeira fase não será tão elevado como isso. Repartindo por dois ou três patrocinadores, sem obrigar a edilidade a algum esforço financeiro, se tivermos em linha de conta que somente duas equipas em Portugal têm orçamentos na casa dos 300 mil contos, para arrancar penso que num projecto deste tipo 100 mil contos seriam praticamente suficientes.

Em que patamar quer o LCC?

Gostaria que o LCC fosse uma bandeira e pudesse estar no pelotão internacional.

Ao nível da Maia?

Nem mais. Mas de imediato isso não é possível. Vamos entrar devagar.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt