João Pedro Mendonça: "Sou expo... ciclista, só ando em piso liso e a direito"
Quantas Voltas já fez a Portugal?
É uma grande sorte perguntar-me isto este ano porque foi o Marco Chagas [comentador da RTP e ex-ciclista] que fez contas e disse-me que esta era a minha 18.ª volta. E para saber estes números, só podia recorrer a duas pessoas organizadas em contabilidade: ou o Marco ou o meu pai.
Portanto, atingiu a maioridade. E agora, o que muda?
[Risos] Pois, atingi a maioridade agora. Ou fiquei jurássico... O que sei é que aprendi há três anos como beber água ao mesmo tempo que ando de bicicleta. Nisso ainda sou fresquinho!
Então, com que idade é que aprendeu a andar de bicicleta?
Tardíssimo, deveria ter uns 15 ou 16 anos. Em pequeno, era uma criança um pouco acidentada, com tendência para a queda e os meus pais, avisados, evitaram que eu tivesse uma bicicleta porque, em circunstâncias normais, eu já era cliente habitual do Hospital de Seia [risos].
Porque decidiu aprender na adolescência?
Aprendi a andar de bicicleta no aniversário de uma namorada [risos]. Durante a festa, havia um grupo que foi andar de bicicleta e eu esperando que não chegasse a minha vez. Tentei evitar, mas não consegui, tive vergonha de dizer que não sabia e não quis dar parte fraca. Pus-me em cima da bicicleta e quando ela ia para a esquerda, inclinava-me para a direita. Nem estava a acreditar que tinha conseguido, mas também não disse nada. Fiquei eufórico, passei da vergonha extrema ao orgulho na bicicleta.
Comprou um bicicleta depois disso?
Não. Só comprei quando já era narrador de ciclismo, mas sempre quis muito ter uma. Hoje, até há alguns espectadores que me dizem que se lembram de mim quando fui corredor, alguns até me caracterizaram no pelotão [risos]. Há pessoas que me materializaram de uma maneira que nunca fui...
E hoje, por onde anda de bicicleta?
Costumo dizer que sou um expo...ciclista [risos], na Expo [Parque das Nações, Lisboa]. Só ando em piso liso e a direito [risos]. Fiz uns crosses informais com as equipas de ciclismo da RTP. Quando começaram a querer ir para Sintra, achei muita graça, agradeci, mas voltei para a Expo. [risos] Voltei a andar sozinho!
É católico. Nunca pensou em fazer uma peregrinação a Fátima?
[Risos] Tem a serra d"Aire e Candeeiros pelo meio. Mas se não houvesse serras, ia até Santiago de Compostela. E com paragem em Fátima!
Como é que um rapaz que mal sabia andar de bicicleta se transforma narrador de ciclismo?
Começo através do Ribeiro Cristóvão, foi a primeira pessoa que me incumbiu a tarefa de ser narrador, o que foi um pouco a desilusão. Eu queria ir com ele fazer uma Volta a Portugal, porque ele era impressionante no improviso, mas no ano em que fui, ele não pôde ir. A primeira narração foi na Renascença, onde me mantive durante oito anos em exclusivo, depois fiz dois anos para a rádio e para a RTP. E depois foi sempre para a RTP. Em 1998, o Francisco Figueiredo, narrador da Volta, deixa a RTP e o coordenador Miguel Barroso pergunta na redação se alguém tinha feito ciclismo. Eu disse que sim.
Aos fim de 18 anos, o que é que é sempre igual e o que é novo?
O Marco Chagas é sempre igual. Ele está hoje como estava no meu rádio quando o meu pai me levava às vezes ver as provas. Tenho até uma história curiosa. Houve um ano em que o meu pai, e eu era miúdo, não me levou a ver a prova, mas quando chegou a casa trouxe-me um nougat e disse-me que foi o Joaquim Agostinho que mo mandou. A partir de uma altura, ele deixou de me levar à Volta, mas trazia-me um nougat e dizia que tinha sido o Joaquim Agostinho a mandar-me [risos]... Mas voltando, seguia o ciclismo na rádio e o Marco era um ídolo. A minha primeira obrigação, em 1998, foi fazer duzentos e tal dias de todas as provas de ciclismo e, desde o pequeno-almoço até dormir, lá estava eu com o Marco a fazer todas as perguntas da modalidade. Houve uma empatia muito grande com ele, que se mantém.
O que é novo ao fim desse tempo?
A nível da comunicação, a Volta é um projeto que agarrei desde o primeiro momento, fui à procura de um nicho de mercado e de um modelo que fosse diferente.
Em quê?
A conclusão a que cheguei é que a narração futebolística é, porque toda a gente percebe de bola, uma relação entre conhecimento técnico e as opiniões bem definidas do narrador, do comentador e do espectador no sofá. Ou seja, é um cruzamento sem semáforos. Eu olhei para o ciclismo e apliquei um modelo diferente. Tentei fazer vingar a concordância e construí um estilo narrativo com semáforos. Se compararmos com o futebol, o narrador relata os passes e o comentador os golos... eu só tinha de usar a ignorância a meu favor e aprender a fazer os passos mais certeiros e o narrador marcava o golo. Isto fez que eu e o espectador crescêssemos lado a lado.
Acredita que as pessoas veem a Volta como uma série?
Estou em crer que sim. Os protagonistas são os corredores e os guionistas são sempre os mesmos. Este ano, vejo que há crianças e cada vez mais mulheres que vêm ter connosco, o que significa que eles estão a ver. Isto coloca um novo desafio.
Que é?
Que é voltar sempre aos princípios-base. Os miúdos, através do Facebook, interagem, fazem perguntas técnicas e discutem estratégias. Creio que eles chegam pela via da prática da modalidade, pelo crescimento da BTT, o que pode ter ressuscitado o interesse pela modalidade de estrada.
Segundo as audiências, desde 2009 que as transmissões da Volta sobem em número de espectadores. O programa Há Volta, ancorado na prova, tem caído desde 2009, embora este ano tenha recuperado ligeiramente. Como explica?
[Sorrisos e silêncio] Tenho mais facilidade em apreciar a sua pergunta do que respondê-la! [risos]
Mas consegue justificar?
Não consigo encontrar uma forma.
O que é que está a mudar?
Em primeiro lugar, as imagens do helicóptero, o ir à procura da sidestory [história lateral]. Usar o ciclismo como motor para mostrar o país tem sido um bom argumento a favor do ciclismo. O facto de ser um nicho de mercado, em que não há guerra de argumentos, em que não me coloco acima do público porque - a narração tem de ser inclusiva, não pode ser doutoral - jogamos num produto que é transversal e democrático.
Quanto tempo antes se prepara para a prova?
Depende. Já fui dos seis meses a zero. No ano passado, quando cheguei dos Jogos Olímpicos fui direto para a prova, para Castelo Branco. É complicado. Gosto de fazer uma base de dados própria de todos os corredores do mundo, de todos os resultados e quando não a faço, arrependo-me. Este ano, fui aos sites especializados.
Que material procura?
Estatísticas. Depois, tenho noção do trajeto da Volta dois ou três meses antes e vou estudar História de Portugal dos sítios onde passa a prova, procuro informação geográfica. Se for falar de doping, tal obriga-me a encontrar na Medicina gente tão paciente como o Marco Chagas no ciclismo [risos], com quem falo em relação a táticas. Falo depois com os corredores para tentar perceber abordagens às corridas, são fontes curiosas.
Depois de "Vai Estudar, Relvas", que cartazes esperava este ano?
Este ano, houve o Portas na Volta a França. Mas não me lembrei disso, parece ter passado a moda da manifestação. Continua a mesma crise, mas com menos convocação.
A Volta é um barómetro?
Não creio, mas a forma como faço a prova não me permite estar tão atento a essas questões.
Quantas Tours, Giros e Vueltas já fez?
Como o Marco não se dignou fazer as contas, não sei [risos]. Em França tenho 16 ou 18, Voltas a Itália e a Espanha - que já deixámos de fazer - fiz sete ou oito.
Qual a mais entusiasmante?
O Tour, de França. É mais entusiasmante e frustrante.
Porquê?
É a mais frustrante porque nunca a fiz, nem farei no local. Tenho de narrar a prova a partir de Lisboa, por isso sou a primeira vítima do sucesso do produto. Mais entusiasmante porque é um produto prime, muito testado, muito bem produzido, com maturidade perfeita. Os franceses perceberam que tinham algo que promovia a entidade e a nação, uma prova que marca a imposição de um país e cultura semelhante ao que os americanos fizeram com o cinema e traz-lhes retornos e dividendos nos mais diversos mercados.
Em Portugal, estamos a caminho disso?
É tarde para arrancar para esse campeonato.
Porquê?
Tínhamos de assegurar que dois ou três corredores portugueses ganhassem mais de setecentos euros para conseguir impor a qualidade do produto. Se a associação das marcas ao produto não permite que tenham modelo de investimento para pagar mais do que subsídio de sobrevivência aos atletas, como hão de investir mais dinheiro para construir o resto, para colocar as regiões a quererem aparecer na prova? Em França, tens a polícia, os vários ministérios e as várias regiões a lutar por um lugar no Tour. Cá, o Algarve quereria participar na Volta, lá o Algarve deles quereria brilhar na prova. Temos de pensar em sobreviver...
E, por isso, a Volta é sempre a norte?
Não sei se é por ter mais ou menos dinheiro, aparentemente as provas estão lá.
Depois de Lance Armstrong ter reconhecido o consumo de doping e entregue os prémios, desacreditou a modalidade?
Desacreditou. Mas se os números de audiências sobem, tal leva-me a intuir que os espectadores continuam a admirar a capacidade de esforço daqueles atletas e que o doping continua a não conseguir justificar como é que uma pessoa sobe duas vezes a serra da Estrela num dia e volta a fazê-lo no dia seguinte, como aconteceu este ano na Volta. Mas isso é uma interrogação...
Mas quando Armstrong afirmou que "nenhuma geração do ciclismo estava limpa"...
Foi uma desilusão, senti-me traído e não foi só pelo Armstrong, foi mais pelo sistema antidoping. Foram feitas mais de quinhentas análises a um dos atletas mais controlados do mundo e nenhuma detetou nada em tempo útil? O que estaremos para descobrir em todas as modalidades? Porque o único ponto de contacto entre o antidoping são os mesmos médicos e os mesmos laboratórios.
A vitória do sul-africano Christopher Froome abre portas ao ciclismo noutros continentes?
Sim, pode ter sido. No atletismo, os africanos têm um extremo potencial no fundo. O fator entusiasmo pode fazer explodir o ciclismo em África, descobrir gente com potencial e creio que, mais tarde ou mais cedo, tal vai acontecer.
Festejou com Rui Costa a vitória de duas etapas no Tour?
Festejei pelo Facebook e telefone. Por isso, a prova é mais frustrante. Não estou lá.
Este ano, que cortes houve na cobertura da Volta?
A operação é do Miguel [Barroso]. Tivemos menos jornalistas, fomos quatro no total, e fomos todos multitarefa...
O que foi preciso esse ano?
[Risos] Foi preciso ser narrador, repórter para metade das peças dos companheiros, usar todos os recursos de coesão possível. Todos trabalhámos assim.
O que faz à família - é casado [Paula] e tem um filho [David, 13 anos] - durante as provas?
[Pausa] Peço desculpa, o meu filho faz anos durante a Volta. É isso... peço-lhes desculpa.
E hoje em dia, que ciclista é que envia nougats para o seu filho?
[Risos] Gasto mais telefone e discuto a Volta todos os dias com ele. E às vezes vai a estúdio cheirar um bocadinho das provas.
Quer seguir as pisadas do pai?
Não, quer ser cirurgião. Ele já é confrontado com o trabalho e diz que jornalismo desportivo é coisa para loucos. Bom, parece-me prova de alguma inteligência [risos].
E quem é que ensinou o seu filho a andar de bicicleta?
Aprendeu sozinho, com metade da idade do pai.