João Havelange, o multiatleta que deixou a FIFA com os cofres cheios
Joseph Faustin era um homem habituado a viajar. Nasceu na Bélgica, trabalhou no Congo, lecionou e vendeu armas no Peru e regressou posteriormente ao país natal. Pelo meio, em abril de 1912, estava em Inglaterra quando comprou um bilhete para embarcar num navio rumo a Nova Iorque. No entanto, no dia da viagem, atrasou--se e perdeu o navio, ao qual chamaram... Titanic. E assim começou a história de João Havelange, o homem que transformou a FIFA numa máquina de fazer milhões.
"É verdade, o meu pai comprou uma passagem para ir no Titanic, mas perdeu o barco que o levaria a bordo. Se não fosse isso, eu não estaria aqui hoje. Por isso a minha história começou no dia em que o Titanic zarpou", contou, numa entrevista ao Globo, o antigo presidente da FIFA, que morreu ontem, aos 100 anos, vítima de problemas de saúde que se arrastavam desde 2012.
O dirigente brasileiro tinha sido internado em julho, devido a uma pneumonia, mas regressou a casa. Porém, nos últimos quatro anos, Havelange já tinha sido internado cinco vezes e o seu estado de saúde estava a agravar-se. Era previsto que o antigo presidente da FIFA estivesse presente na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, mas já não pôde marcar presença, numa altura em que a sua condição estava a piorar. Já no decorrer dos Jogos do Rio, curiosamente, muitos brasileiros têm-se insurgido contra a designação do Engenhão, agora conhecido como Estádio Nilton Santos mas que anteriormente era designado Estádio Olímpico João Havelange. A omissão do nome do antigo dirigente brasileiro, aliado ao seu falecimento, motivou muitas críticas.
Formado em Direito, João Havelange trabalhou num escritório de advogados, mas foi no desporto que fez carreira. Chegou a ser futebolista nas camadas jovens do Fluminense, o seu clube do coração, mas foi dentro de água que ganhou protagonismo, ao representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, na natação, e em Helsínquia, em 1952, como jogador de polo aquático. Foi nesta última modalidade que chegou à medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos de 1955, no México.
Era, no entanto, no dirigismo que os papéis mais relevantes estavam reservados. Havelange foi presidente da Federação Paulista de Natação e da Confederação Brasileira de Desportos, a antiga CBF, cargo que lhe valeu ser chamado sarcasticamente de "nadador" por Diego Armando Maradona. Mas foi em ano de Revolução em Portugal, em 1974, que Havelange mudou o futebol mundial para sempre.
A revolução
A FIFA, organismo que controla o futebol internacional, nem sempre foi a máquina de dinheiro que é hoje. O antecessor de Blatter que o diga. "Quando cheguei, tudo o que encontrei foi uma casa velha e 20 dólares [23 euros] na conta. Quando saí, 24 anos depois, deixei ativos e contratos no valor de quatro mil milhões de dólares [4,6 mil milhões de euros]. Acho que não é nada mau", contou, numa entrevista à FIFA, o brasileiro que esteve na organização de seis Mundiais (alargou os torneios para 32 seleções e criou competições para as camadas jovens) e deixou um legado de luxo ao suíço Joseph Blatter.
"Ele tinha uma ideia na cabeça, tornar o futebol um jogo global, com a frase "o futebol é uma linguagem universal", e teve sucesso", elogiou ontem o dirigente suíço. No entanto, a FIFA e a polémica andam muitas vezes de mãos dadas e João Havelange acabou por não ser exceção.
Tal como Blatter, Havelange foi associado a práticas de corrupção, denunciadas por um relatório do Comité de Ética da FIFA. Em causa esteve o favorecimento da empresa ISL, da Suíça, na comercialização de direitos televisivos e publicidade nos Mundiais e Jogos Olímpicos, em contrapartida a um alegado "financiamento de votos" na sua eleição.
Em 2013, Havelange, acusado de ter recebido subornos através da empresa de marketing no valor de um milhão de euros, decidiu deixar o cargo de presidente honorário da FIFA, ele que também fez parte do Comité Olímpico Internacional, entre 1963 e 2011.
Havelange, que admitiu manter um carinho especial por Portugal, foi nomeado comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 1960, ele que era presença regular em galas de distinção do desporto português - em 2001 entregou o prémio de melhor futebolista ao compatriota Mário Jardel.