Joana Gama: feliz depois de 14 horas ao piano

Tocou <em>Vexations</em>, de Erik Satie, vigiada de perto por uma equipa médica da Federação Portuguesa de Futebol. Chegou a pensar "porque é que me meti nisto?". Mas no final foi uma felicidade enorme
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O domingo foi passado ao piano. Nada de novo para Joana Gama, exceto o detalhe de não se ter levantado da banqueta nem deixado de tocar a peça de Erik Satie, Vexations. Aconteceu ontem na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa entre as 10 da manhã e as 00.02, integrado na programação da Pianomania!. "Não comi nada nem bebi. Esteve um fisioterapeuta lá naquele período mas acabou por não interferir", conta ao DN a pianista de 34 anos.

A maior dificuldade desta maratona a que, pela segunda vez, se sujeitou foi física: "Tive imensas dores, aí pelas oito e meia [20.30], que foi a primeira vez que olhei para o relógio. Dores nas costas e no ombro esquerdo, porque a mão esquerda nunca parava de tocar. Fui fazendo alongamentos, mas as dores chegaram. As pernas incharam bastante, com a retenção de líquidos", revela já depois de uma noite bem dormida. "Durante a performance houve uma altura em que pensei 'porque é que me meti nisto?!"

Depois de tocar a última nota, levantou-se, agradeceu os aplausos. Comeu bananas. "Não estava a morrer de sede, nem de fome, nem cheia de vontade de ir à casa de banho". A pianista preparou-se para aquele domingo como quem corre uma maratona. Ou faz um desporto de alta competição. "Fui acompanhada pela unidade de saúde e performance da Federação Portuguesa de Futebol", explica Joana Gama. O acompanhamento implicou monitorização do sono, do stress, adaptação da alimentação e do ritmo corporal aquele longo período de imobilidade. Antes e depois da performance, que foi também transmitida em live stream, recebeu uma massagem.

Durante 14 horas, muitas foram as pessoas que passaram por aquele espaço, no edifício principal da fundação Gulbenkian, junto aos auditórios. Houve quem escutasse a música, quem lesse, quem fotografasse. Houve até quem dormisse, de barriga para o ar, no chão alcatifado. E houve uma menina de 5 anos que deixou um desenho à pianista. E uma senhora a fazer crochet... Joana diz que, apesar de parecer muito concentrada ("e estava"), apercebia-se do que se passava à sua volta. Soube quando havia mais ou menos pessoas, quando as pessoas estavam mais ou menos agitadas, apesar de raramente ter tirado os olhos da pauta e do piano. "Achei comovente a forma como as pessoas estiveram ali naquele momento". Em 2016, quando tocou 15 horas de Vexations em Viseu, muitas pessoas que a foram escutar fizeram-no por acaso, admite, Ontem, na Gulbenkian, "as pessoas sabiam bem ao que iam".

A seu lado tinha uma misteriosa caixa cor de rosa. Apercebeu-se da curiosidade que o objeto despertou. "Tinha amêndoas torradas, tâmaras, alperces, chocolate negro, dois borrifadores e lenços de papel", revela. Não a abriu.

Menos de 24 horas depois da maratona musical, a vida regressa, com calma. Tem o corpo dorido. "Estou a comer pouco, vou ter uns dias mais calmos", diz-nos bem disposta.

Repetir? "É uma experiência tão forte e é chegar a um limite, musical e físico. Ontem foi tão forte que me parece difícil que faça sentido repeti-la", considera.

Mas o tempo - esse que desafiou, em centenas de repetições da obra de Erik Satie - ajudá-la-á a pensar. "Para já, este é um ponto de chegada".

Quantas vezes repetiu? Não sabe. Em Viseu tocou 471 vezes. Ontem na Gulbenkian fez passar, folha a folha, do lado direito para o esquerdo. Mas ainda não contou quantas vezes. "Da última vez demorei meses, aí meio ano a contá-las..."

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