Joan Miró e Pablo Picasso, uma relação de amizade, respeito e admiração

A exposição <em>Miró - Picasso</em> em Barcelona celebra a amizade entre os dois artistas excecionais que mudaram radicalmente a história das vanguardas e da arte do século XX.
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Um jovem Joan Miró chegou a Paris em 1920 e na capital francesa morava o já reconhecido pintor Pablo Picasso. Os seus caminhos cruzaram-se pouco depois e começou então uma relação de amizade, respeito e admiração. Os dois grandes artistas espanhóis do século XX escolheram Barcelona para criar em vida os seus próprios museus que hoje acolhem uma exposição única de dois espíritos inovadores. A Fundação João Miró e o Museu Picasso exibem, até o 25 de fevereiro, 350 obras de ambos, através das quais podemos conhecer o percurso de cada um deles e a partilha de momentos transcendentes das suas trajetórias.

A exposição está organizada em sete grandes eixos cronológicos e temáticos que abrangem desde 1917 até 1973. Mas são dois os temas principais que constituem a espinha dorsal da mostra. "Por um lado, a amizade que ambos mantiveram ao longo das suas vidas, refletida em obras de arte e documentos que testemunham os seus encontros, as suas afinidades e divergências artísticas e as suas amizades partilhadas", explica Marko Daniel, diretor da Fundação Joan Miró. Por outro, "a ligação entre os dois artistas com Barcelona, que se traduz no legado que deixaram à cidade sob a forma de um museu monográfico", acrescenta Emmanuel Guigon, diretor do Museu Picasso de Barcelona.

Esta exibição pretende realçar a contemporaneidade de ambos os artistas e mostrar aos visitantes as coleções privilegiadas das duas instituições, com obras excecionais de ambos os artistas que se cruzam pela primeira vez. Coleções que foram complementadas por reconhecidas obras de instituições internacionais e coleções privadas.

Foi em 1917 que Pablo Picasso (Málaga, 1881 - Mougins, 1973) visitou Barcelona motivado pelo Ballet Parade dos Ballets Russos de Diáguilev, apresentado no Teatro do Liceu. O artista malaguenho era responsável pela cenografia, com desenhos do classicismo. Joan Miró (Barcelona, 1893-Palma de Maiorca, 1983) esteve na estreia, mas não teve coragem de o cumprimentar.

Em 1919 o artista catalão visitou a casa da mãe de Picasso, amiga da sua progenitora e foi então que teve oportunidade de contemplar as obras do pintor que, nessa altura, já triunfava internacionalmente. Em 1920 se produz o primeiro encontro presencial dos artistas, no qual Miró entregou a Picasso uma encomenda da mãe (parece que terá sido uma "ensaimada").

Picasso interessou-se imediatamente pela obra deste jovem catalão, como o demonstra o facto de, em abril de 1921, Miró ter inaugurado a tão desejada exposição na Galeria La Licorne e uma das obras expostas, Autorretrato com Gabardine, já estar registada como sua propriedade. Deu-lhe conselhos e apoio, recomendando-o, entre outros, ao seu negociante de arte, Paul Rosenberg.

"A relação entre os dois, num primeiro momento, foi mais de admiração de Miró por Picasso que era doze anos mais velho e já um artista plenamente consagrado", explica Sonia Villegas, uma das quatro comissárias de esta exposição. "Acreditamos que também existia um grande interesse de Picasso no que respeita a Miró. Aliás, sempre teve duas pinturas importantes de Miró na sua coleção,", acrescenta. Picasso disse a Miro, em 1924: "Depois de mim, tu abres uma nova porta", sublinha a comissária.

Joan Miró tinha realizado uma exposição na Catalunha, em 1918, que não recebeu boas críticas, e depois de ver obras de Picasso começou a tê-lo como um dos seus referentes, junto com a pintura gótica e a arte oriental. "O cubismo ajudou Miró a estruturar a composição", explica Villegas. Trabalhou em paisagens, retratos e natureza morta e apresenta, entre outros, "o cavalo, o cachimbo e a flor vermelha" que remete a um desenho de Picasso publicado num livro de Cocteau.

O Retrato de Uma Dançarina Espanhola, de Picasso, está exposto junto com Blanquita Suárez, de Miró, e também se pode apreciar o famoso Arlequim, que foi a primeira obra que o pintor malaguenho doou a uma coleção pública.

Foi em Paris que Picasso ajudou o então jovem artista catalão. Mas também "há quem diga que Picasso se interessou-se pelo surrealismo através de Miró", sublinha Teresa Montaner, outra das comissárias das exibição.

Em 1924 André Breton, quando funda o movimento do surrealismo, tem Picasso como referência, e "quis abolir as fronteiras das artes, fundi-las", acrescenta. Surgem então obras como As Três Dançarinas, "um Picasso inédito", lembra Sonia Villegas. Uma obra que marcou o fim do classicismo e o início de um novo ciclo do pintor.

Tal como, lembra Teresa Montaner, "ambos os artistas coincidem na vontade de desafiar a pintura, o sistema de representação da arte ocidental. Miró observa muito Picasso, embora nunca o copie, mas sim o tenha em conta nos seus trabalhos."

Um capítulo central na obra gráfica de Miró e Picasso são os livros de artista, fruto do seu interesse pela poesia e das amizades estreitas que mantiveram com diferentes poetas, entre os quais figuravam Georges Hugnet, Tristan Tzara e Paul Eluard. A poesia abre as portas a novas aventuras criativas, que transcenderam as fronteiras tradicionais entre as artes.

Tanto Miró como Picasso empreenderam numerosos projetos de bibliofilia e fizeram-no de mãos dadas com os grandes editores da época: Tériade, Pierre-André Benoit, Iliazd e Louis Broder. Colaboraram na angariação de fundos para a causa republicana na edição do álbum Solidarité e, noutras ocasiões, prestaram homenagem a poetas amigos.

Elena Llorens, também comissária da exibição, indica que os pontos em comum entre os dois artistas não estão nas obras, "se não em momentos onde a sua prática artística se aproxima, porque partilham um mesmo interesse". Acredita que o visitante não vai sair indiferente, "vai sair comovido, porque vai descobrir que são dois grandes artistas de todos os tempos, dois pioneiros em muitos aspetos".

Margarida Cortadeilla, igualmente comissária, fala de afinidades eletivas em comum, incidências na cerâmica, na obra gráfica, na procura dos limites da pintura... "Percebe-se um diálogo entre, aparentemente, duas obras tão distintas", afirma.

Passam os anos e chega a Guerra Civil espanhola. É então que "Miró cria a sua própria linguagem se e vão separar. Mas neste momento os dois colocam os seu esforço em quebrar o sistema artístico de ocidente", sublinham as comissárias.

Indicam também a intenção destes dois artistas de colaborarem sempre com o Governo da República. Prova disto é a sua participação na Exposição Internacional de Paris, em 1937. "Primeiro convidaram Picasso, que prepararia o Guernica, numa parede de sete metros de longitude", conta Teresa Montaner.

Depois, a Joan Miró pediram-lhe para preencher o patamar de umas escadas " e pintou sobre o muro, adaptou-se à superfície que existia". Picasso, pelo contrário, "queria que os outros se adaptassem a ele".

A forma de preparar os seus respetivos trabalhos foi muito diferente. Picasso realizou um importante conjunto de desenhos prévios ao Guernica enquanto Miró pintou o Ceifador diretamente sobre o muro, entre outras razões, para aprofundar as possibilidades que lhe oferecia a matéria. Os dois artistas estiveram presentes na inauguração do Pavilhão Espanhol, a 12 de julho de 1937.

O início da II Guerra Mundial em 1939 surpreende Miró em Varengeville-sur-Mer (França), onde vivia há três anos por causa da Guerra Civil Espanhola, e só os bombardeamentos da Normandia antes da ocupação de França o fizeram decidir regressar à Catalunha em junho de 1940.

Picasso optou por mudar a sua residência para Royan, que durante o primeiro ano do conflito alternou com Paris. No entanto, no final de agosto de 1940, apesar da ocupação, decidiu mudar-se para o atelier dos Grands Augustins. "Foram anos de dureza existencial. Os dois separaram-se fisicamente e é também o momento de separação dos seus caminhos", afirma Elena Llorens. "Miró começa a expressar-se de uma forma diferente, com ideogramas enquanto Picasso reduz nestes anos a sua paleta cromática", acrescenta.

Em Varengeville, Miró inicia a série de 23 Constelações - concluída em Mont-roig em 1941 - com a qual inaugurou uma nova linguagem idiossincrática baseada em signos e símbolos que tornavam poético o ato de pintar. "Miró escapou assim de uma realidade opressiva e angustiante, enquanto Picasso a olhava de frente e a retratava com o seu estilo expressivo característico", sublinham as comissárias. Durante uns anos esteve muito isolado e nos anos 1950 partiu para Maiorca. "Era o momento de maior reconhecimento de Miró", lembra Teresa Montaner.

A entrada no domínio da cerâmica a que colocou os dois artistas perante novos desafios, tais como partilhar o seu trabalho com artesãos e aprender as bases do ofício na oficina. Ao mesmo tempo, este ofício ancestral estimulou-os a percorrer uma nova rede de caminhos, desde a decoração e a reinvenção da loiça tradicional, à escultura e, através da cerâmica mural, a possibilidade de dar o salto para a escala arquitetónica.

Picasso e Miró mantiveram uma estreita amizade até ao fim das suas vidas. "Aos seus 80 e 90 anos continuavam a partilhar amizade e com a mesma energia criadora", lembra Elena LLorens. A admiração mútua que tinham é evidente de muitas formas, incluindo dedicatórias e homenagens sob a forma de obras de arte. Nos últimos anos, Miró e Picasso partilharam também a afirmação do seu trabalho, não só nas muitas exposições que realizaram nas galerias dos seus respetivos negociantes de arte, mas também em grandes exposições antológicas e retrospetivas.

No caso de Picasso, em 1970, quando ele tinha quase 90 anos, e em 1973, foram apresentadas duas exposições no Palais des Papes, em Avignon, que reuniram um total de 400 obras especialmente escolhidas pelo artista.

No caso de Miró, o Grand Palais de Paris organizou-lhe uma grande exposição em 1974, quando tinha 81 anos de idade, na qual o artista quis que as suas obras recentes ocupassem a maior parte do espaço expositivo e que tivesse um lugar preferencial no itinerário.

Obras e documentos artísticos emblemáticos mostram a amizade, o reconhecimento e o respeito entre Miró e Picasso. Mulher, Pássaro, Estrela (Homenagem a Pablo Picasso), é talvez a representação mais factual. Miró tinha começado esta tela em 1966 e terminado em 8 de abril de 1973, dia da morte de Picasso. No verso da obra, Miró quis registar, em catalão, que com esta tela estava a homenageá-lo.

Um ano e meio antes, em 25 de outubro de 1971, Miró aceitou uma encomenda do jornal La Vanguardia para ilustrar a primeira página comemorativa do 90º aniversário de Picasso. Dez anos mais tarde, aquando das celebrações do centenário do nascimento do artista malaguenho, Miró desenhou o logótipo. Outros vestígios desta amizade de mais de 50 anos encontram-se sob a forma de desenhos e dedicatórias, como os que Picasso estampou em vários dos seus livros ilustrados, que deu de presente a Miró.

Este projeto começou antes da covid. "Sempre pensámos que Barcelona era a cidade para fazer a exposição, porque os dois museus dos artistas criados em vida estão aqui", indicam as comissárias.

A exibição coincide com a celebração do 50.º aniversário da morte de Pablo Picasso e do 40.º da morte de Joan Miró e situa-se no âmbito dos atos da celebração Picasso 1973-2023.

É a primeira vez que a Fundação Joan Miró e o Museu Picasso de Barcelona organizam e produzem uma exposição nas suas respetivas sedes. No total, são 350 obras e documentos, muitos deles vindos de galerias e museus de muitas partes do planeta. Entre eles o Museu Nacional Picasso de Paris, o Museu Nacional Centro de Arte Rainha Sofia (Madrid), a National Gallery of Art de Washington e a Tate Gallery de Londres.

A exibição permite que muitas peças visitem a cidade pela primeira vez, comoé o caso de Mulher, Pássaro e Estrela.

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