JMJ: a fé no vegetarianismo contra a ciência e o bom-senso
Desde que René Descartes e o método científico nasceram, há mais de 400 anos, já tivemos mais do que tempo para aprender a "chegar à verdade, através da dúvida sistemática e da decomposição do problema em pequenas partes".
Contudo, durante as últimas Jornadas Mundiais da Juventude, assistimos a um debate internacional, muito mais baseado na fé do que na ciência, sobre os padrões alimentares do milhão de peregrinos que nos visitaram. Concretamente, ouvimos que uma dieta vegetariana podia compensar as emissões dos aviões que voaram até Lisboa para as JMJ.
Para não cairmos na armadilha confortável das soluções fáceis, que tanto gostamos de criticar na política, vamos tentar, de modo rudimentar, seguir os preceitos do método científico.
Um estudo recente (Jennings R,.2023) concluiu que a dieta omnívora tem um peso carbónico de 3.19 kg/CO2 por dia e a vegetariana de 1.57 kg CO2 - uma diferença de 1.62kg de CO2. Ao mesmo tempo, usando a mesma forma de cálculo do jornal britânico The Guardian, uma viagem de avião Lisboa-Buenos Aires-Lisboa represente uma libertação de 6287.00 kg de CO2. Ou seja, escolhendo uma dieta vegetariana, um peregrino vindo da Argentina precisaria de 3881 dias (mais de 10 anos) para compensar as emissões apenas do seu voo para as JMJ.
Viagem parecida fazem as bananas importadas às quais, felizmente, temos fácil acesso em Portugal. Segundo Svanes, E., 2023, desde a produção ao supermercado, a banana tem um peso carbónico de 1.37kg de CO2/kg. Ou seja, apenas 1kg destas bananas anula um dia inteiro de dieta vegetariana. O abacaxi e as sementes de chia, tão saudáveis para pôr nas saladas, chegam também da América do Sul e aquele Kiwi dourado, que tanto está na moda, vem "apenas" da nossa antípoda Nova Zelândia.
Com efeito, só o transporte alimentar representa 5% das emissões totais de gases de efeito estufa (GEE) (Crippa, M., 2021). De acordo com a ONG Our world in data, a agricultura representa 18.4% e a produção animal 5.8% dos GEE - quase o mesmo que o transporte de comida.
Importante também é perceber o impacto do desperdício alimentar: cerca de 1/3 - sim, um terço - de toda a comida produzida é desperdiçada. (Pandey, A. 2021). Colocando em perspetiva, se o desperdício alimentar fosse um país, seria o terceiro maior poluidor mundial, só atrás da China e EUA (FAO 2013).
Sobre o famoso gás metano, comecemos por esclarecer que se trata de um poluente climático de vida curta (12.4 anos, segundo Myhre et al. 2013) e, portanto, não pode ser avaliado da mesma forma que o dióxido de carbono (CO2). Aplicar o Global Warming Potential (GWP), que não reflete as condições de degradação natural do metano, leva a cálculos incorretos, que informam políticas públicas e estratégias de mitigação erradas. Em conjunto com o GWP, deve então ser usado o GWP* (Global Warming Potential Star), um indicador mais preciso, que contempla o tempo real de vida deste gás, e cujos resultados mais recentes mostram que a produção de proteína proveniente de ruminantes nos EUA não contribuiu para o aquecimento climático adicional, entre 1986 e 2017. (Liu, S., 2021). Os valores acima, devem portanto ser ajustados e muita pesquisa é necessária nesta área.
Mas mais ainda, o CO2 que resulta da decomposição natural do metano é utilizado (fixado) pelas plantas na fotossíntese, para o transformar em celulose, criando-se um ciclo natural em que os ruminantes comem as plantas e o processo se repete. O metano torna-se assim parte do ciclo do carbono no ciclo biogénico. Para terminar, como sabemos, as fezes dos animais reduzem a necessidade de fertilizantes sintéticos - responsáveis por 2,1% do total das emissões antropogénicas de GEE (Menegat, S., 2021). Traduzindo: ao defecarem para o pasto, as nossas vaquinhas diminuem a necessidade de recurso a este tipo fertilizantes, potenciando a redução das emissões de GEE libertadas pelos fertilizantes sintéticos.
Se acrescentarmos que a produção de energia representa 73,2% dos GEE, percebemos que a troca de dieta omnívora para vegetariana é, no mínimo, uma medida de pouca utilidade. Por ano, essa alteração representa pouco mais que 500Kg de CO2, o equivalente a uma simples viagem, de ida e volta, ao Porto, de carro.
Usemos então o bom senso que Deus nos deu: a redução da pegada de carbono através da alimentação passa fundamentalmente por escolhas baseadas em produtos da época, que tenham poucos quilómetros de viagem, e por evitar o desperdício alimentar.
Todos temos direito - e o dever - de ter um impacto positivo no mundo à nossa volta, mas se realmente queremos melhorar o Planeta, temos que ser mais profundos do que trocar um bife de vaca do Alentejo por um bife de seitan da Amazónia. O mundo não se salva com dietas da moda, emoções passageiras ou "virtue signaling" nas redes sociais. O mundo salva-se com ciência.
Rui d"Orey Branco é professor universitário e consultor de agronegócio.
Filipe Domingues é autor e consultor de projetos internacionais.