Jiu-Jitsu, o sucesso mundial que nasceu de um fracasso

<p>É a maior família de atletas na história do desporto. Estão espalhados pelo mundo, mas foi no Brasil que Hélio Gracie mudou, há setenta anos, a dinâmica do Jiu-Jitsu, a famosa arte marcial originária do Japão. Transformou-a em lenda. Vai na terceira geração, com uma tetracampeã mundial, Kyra Gracie, a primeira mulher a romper a tradição masculina da família. A fórmula nasceu por causa do corpo fraco do seu fundador.</p> <p> </p>
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PRONUNCIAR a palavra «Gracie» é o mesmo que dizer Jiu-Jitsu brasileiro. Mérito de Hélio Gracie, o mentor que há setenta anos agarrou na arte marcial tradicionalmente japonesa e lhe inventou novas técnicas. Mundialmente, a palavra também não é tão estranha, à conta das milhares de academias afiliadas. «Gracie Jiu-Jitsu» é, então, um reflexo condicionado que remete para a «arte suave». Já lá vão três gerações. Por osmose, também remete para o segredo do sucesso dessa arte marcial: muito treino e dieta rigorosa.
Mediática, polémica, inovadora, machista, invencível, disciplinada, conflituosa, envolta em intrigas. Os adjectivos são lugares-comuns para falar dos Gracie na imprensa, nos documentários e nos livros que já contêm parte da memória e do legado da família, a maior em número de atletas de Jiu-Jitsu na história do desporto, com quarenta federados. Mais ou menos – nem os Gracie sabem ao certo.
O único consenso sobre eles parece ser o de que, além de terem desafiado o tradicional Jiu-Jitsu japonês, lhe deram fama pelo globo. Os mais conservadores acusam-nos de terem deturpado a modalidade, reservada aos grandes mestres japoneses.
O que os Gracie fizeram, explica à NS’ Rolker Gracie, quarto filho de Helio que faleceu no ano passado, foi introduzir novos ajustes na arte marcial. «Tornaram-na mais perfeita e refinada do que o Jiu-Jitsu japonês.»
A «inovação» nasceu de um «fracasso» de Helio. Corpo franzino, vertigens, condenado muito novo a uma saúde débil, ele agarrou nas fraquezas e transformou-as em vantagens. A rigidez do Jiu-Jitsu japonês não servia para ele. Adaptou as técnicas originais à capacidade do seu corpo. Movimentos mais suaves. «Quis torná-lo acessível a qualquer pessoa e provar que a força não importa, mas sim a inteligência», chegou a dizer em 2007 à revista Isto É. «Qualquer que seja o golpe que você use, o controlo da articulação vira uma chave de braços, pés e estrangulamentos», diz Rolker, que é mestre de Jiu-Jitsu na sede da Academia Gracie em Humaitá, no Rio de Janeiro. O princípio da arte da guerra: estratégia.
Afastado da escola, Helio começou a assistir às lições de Jiu-Jitsu do irmão Carlos. Um dia, o irmão atrasou-se para uma aula particular. O Gracie-débil, então com 16 anos, tinha toda a orgânica da arte na cabeça. Instruir não lhe iria afectar a saúde. Arriscou. Daí em diante, o aluno pediu que fosse ele a ensiná-lo.
O Gracie Jiu-Jitsu começou, realmente, nesse dia, inaugurando o monopólio familiar. Seminários, merchandising, academias espalhadas pelo mundo, capas de revistas, programas de televisão e um museu nos EUA promovido por Rorion Gracie. Ele levou o desporto para os EUA e foi um dos criadores do maior torneio de Vale-Tudo. A modalidade é hoje conhecida como Mixed Martial Arts (MMA).
Além de ter destronado o Kung Fu como arte marcial por excelência, a modalidade passou a ser moda por lá. É usada nas academias de polícia e no cinema. As cenas de luta de Mel Gibson em Arma Letal foram coreografadas pelos Gracie. O músico Tommy Lee desgasta o seus kimono, fato típico do Jiu-Jitsu, nos tatamis (tapetes), da Academia-Gracie. Sylvester Stallone e Clint Eastwood também por lá passaram.

O «traidor» que veio do Oriente
Viver fora da terra natal não é uma novidade para esta família Jiu-Jitsu. Originária da Escócia, de uma ramificação do clã Farguharson, cuja raiz remonta aos tempos do rei Jaime III, no século XV, o clã Gracie fixou-se em Belém do Pará, em 1870. Gastão, o pai de Helio, era diplomata na embaixada japonesa. Em 1914, o campeão japonês de Jiu-Jitsu, Esai Maeda, queria ali fundar uma colónia. O político Gracie ajudou-o. Para retribuir, Maeda ensinou-lhe os segredos da modalidade. Uma espécie de traição à cultura nipónica, que sempre foi rígida e sigilosa com o Jiu-Jitsu. Gastão ensinou-o depois ao filho mais velho, Carlos, que o ensinou aos irmãos. Inaugurava-se uma espécie de religião. Kid Peligro, autor do livro Gracie, que conta a trajectória dos campeões, sustenta a ideia. «É um mecanismo especial de sobrevivência, de assegurar o futuro não só da família, mas também da arte. Todos os Gracie ensinam aos parentes, desde crianças, a tradição, as técnicas e a filosofia de luta.» Ou seja, enquanto a maioria das crianças anda a brincar, os pequenos Gracie estão nos tatamis a fazer chaves-de-braços.
Os miúdos põem-se em fila para beber água. Silêncio. Arranjam o kimono e o cinto. Seguem ordeiros para uma das salas principais na sede da Academia Gracie em Humaitá. Há uma voz firme a dar instruções. Dois miúdos começam um combate. Os dedos a procurar a melhor forma de agarrar o kimono. O treino termina uma hora depois. Rolker Gracie, também famoso competidor, só tem meia hora para a entrevista. Ainda vai dar uma aula pessoal. No dia seguinte viajaria para Minas Gerais para um seminário. É dos únicos Gracie que ainda estão na cidade carioca, para onde o seu avô veio de barco com a família de Belém para começar uma nova vida. A maioria vive, agora, espalhada pela Europa e nos EUA.
As dificuldades financeiras da família levaram o Jiu-Jitsu para as academias em 1925. A arte marcial tornou-se fonte de rendimento. Actualmente, uma grande maioria faz dela profissão, que se tornou a mais importante arte marcial brasileira. Por isso a indignação de Rolker. «É um desporto que deveria ter sido convidado para participar nos Jogos Olímpicos de 2016.» O Brasil será país anfitrião.
Em Portugal, a importação do desporto é atribuída a Lauro Figueiroa, que a levou há 14 anos. Ele representa os Gracie e fundou a Fundação Luso-Brasileira da actividade. Também a Academia Gracie-Lisboa, dirigida por João Santos, tem o aval do clã do Jiu-Jitsu. A modalidade está a fazer sucesso entre os executivos.

Vale-Tudo?
Folhear os jornais desportivos dos anos 1930 e quarenta é perceber que Helio Gracie era uma estrela. Hoje uma lenda que treinou até ao fim da vida, aos 95 anos.
Para provar a eficácia do seu sistema, ele desafiou a maioria dos mestres de artes de luta. Inaugurou, então, o Vale-Tudo, misto de modalidades. Lutou contra o campeão de luta-livre Wladek Zbysko e contra o então segundo melhor judoca do mundo Kato. Helio estrangulou-o em seis minutos. Foi o seu cartão-de-visita para atrair a atenção do campeão Masahibo Kimura, trinta quilos mais pesado do que ele e nove anos mais velho. Kimura disse que, na época, se ele durasse mais de três minutos contra ele, poderia ser considerado vencedor. O estádio juntou mais de vinte mil pessoas, entre as quais Getúlio Vargas, na altura presidente do Brasil. A luta durou 13 minutos. Kimura ganhou. Moralmente, Helio foi o vencedor.
Hoje esta luta não se chama mais Vale-Tudo, mas MMA. Deriva do Jiu-Jitsu. Rolker desfaz eventuais mal-entendidos à volta da violência da modalidade: «Os media queimam muito o nome do MMA com o nome Vale-Tudo, porque na época não havia regras. Hoje já não é assim. Agora, todos os campeonatos têm regras.» 
O mítico Helio chegou ainda a desafiar ícones do boxe como Primo Carnera, Joe Louis e Ezzard Charles, que nunca aceitaram lutar. Depois, a lenda brasileira do Jiu-Jitsu, aos 43 anos, passou três horas e quarenta minutos a lutar com o seu aluno número um, Waldemar Santana. Até hoje é recorde mundial.
Antes de morrer, o mestre mostrava-se desiludido com o rumo que a modalidade tinha tomado. A filosofia tinha sido «distorcida». Apontava também o dedo aos descendentes. Em 2007, defendeu a prisão de Ryan Gracie, filho do seu sobrinho Robson, por ter agredido um homossexual. Ryan chegou a ser preso por agressão a um idoso e tentativa de assalto. Foi encontrado morto na prisão.
Folhear as intrigas internas da família é encontrar ainda uma disputa jurídica pelo uso exclusivo do nome Gracie e referência à bigamia. O próprio Helio chegou a ter duas mulheres. Numa entrevista à Isto É disse: «Essa história de mulher independente foi inventada por homens preguiçosos.» Não estranha por isso que a família tenha fama de machista.

Kyra, tetracampeã mundial
Se até aqui o Jiu-Jitsu parece ser um desporto dominado por homens, qual o espaço para as mulheres no tatami? Rolker desconstrói. «Há mais mulheres do que homens a treinar dentro da família.»
Dá o exemplo da brasileira Kyra Gracie, de 25 anos, tetracampeã mundial da modalidade e cinturão negro. Ela é profissional na modalidade e a primeira mulher com esse estatuto na família. A «emancipação» significou enfrentar a pressão psicológica de um terreno dominado pelo sexo oposto.
«Tive e ainda tenho de provar que o Jiu-Jitsu não é só para homens», diz Kyra à NS’ por e-mail, desde Nova Iorque, onde foi para um seminário. «É um meio muito machista, e os homens ainda têm o ego muito grande para admitir que as mulheres também podem ser boas.»
Ela, que vive entre os EUA e o Brasil, já posou para revistas de moda. O clã foi aos arames. Chegou a fazer um ano e meio na Faculdade de Direito e só treina com homens. Foi a atleta mais jovem a conquistar o Mundial sem kimono, vertente dentro da modalidade. Nunca perdeu com uma adversária do mesmo peso e grau.
Para combater, entra sempre maquilhada e de unhas pintadas de cor-de-rosa. Superstição, assegura. Depois, quer «provar» que a mulher que pratica a modalidade não precisa ser masculinizada, como impõe o «estereótipo».
Kyra, com longo cabelo castanho-escuro, tem um site pessoal, assessoria de imprensa, é entusiasta das redes sociais e treina seis horas por dia. Pratica ainda judo, modalidade que deriva do Jiu-Jitsu, dá aulas particulares e faz estágios com grupos. Este ano, começou a treinar crianças carenciadas no Rio de Janeiro. «O que me faz feliz é ver o Jiu-Jitsu feminino crescer e ver que sou espelho para a próxima geração.» Depois, o desporto já salvou a vida da irmã. Quando tinha 11 anos levava-a, então com cinco meses, ao colo. «Tropecei e, quando estava quase caindo em cima dela, consegui dar um rolamento e caí por baixo. Ela não teve um único arranhão», conta. As marcas que deixará na modalidade são já óbvias. É considerada mundialmente uma das maiores atletas. Ou seja, hoje, dizer «Kyra» é uma espécie de paradigma: ela está para o Jiu-Jitsu feminino como o bisavô está para a criação da arte marcial.

A origem

De acordo com alguns historiadores, o Jiu-Jitsu, «arte suave», terá nascido na Índia. Era praticado por monges budistas, preocupados com a autodefesa, desenvolvendo uma técnica assente nos princípios do equilíbrio, no sistema de articulação do corpo e das alavancas. Evitava-se assim o uso da força e de armas. A expansão do budismo terá levado, supostamente, as técnicas para a China, chegando ao Japão. Outra versão, que desmente a primeira, é a de que a modalidade nasceu no Japão, tendo como base as crónicas dos historiadores japoneses Nihon Shoki e Kojiki: referem uma competição em muito semelhante ao Jiu-Jitsu. A arte marcial teria  sido adoptada como arte de guerra e treino dos samurais, que desenvolveram estilos próprios. Era proibido passar esses segredos a outros clãs.

Os filhos de Helio Gracie

Rorion (n. 1952) foi um dos criadores do maior torneio de Vale-Tudo, prática actualmente conhecida como Mixed Martial Arts, que foi o torneio Ultimate Fight Championship, UFC.
Relson (n. 1953) é um dos poucos lutadores da família com faixa preta e vermelha. Mora no Havai, onde ensina Jiu-Jitsu.
Rolker (n. 1964) ensina Jiu-Jitsu há mais de vinte anos, além de realizar palestras e seminários sobre a «arte suave».
Royler (n. 1964) foi tetracampeão mundial de Jiu-Jitsu
Royce (n. 1966) foi o primeiro campeão do UFC, demonstrando ao mundo a superioridade do Jiu-Jitsu brasileiro sobre as demais modalidades de artes marciais. É um dos integrantes do Hall da Fama do UFC.
Rickson (n. 1959) é ídolo no Japão, sendo considerado o lutador mais famoso do mundo. Teve uma trajectória invencível, com mais de quatrocentas lutas consecutivas.

Dieta Gracie, o corpo em estado neutro

A dieta Gracie foi desenvolvida por Carlos, irmão de Helio. O regime alimentar consiste em manter o corpo em estado neutro, através da combinação de grupos de alimentos para prevenir doenças e a acidez do organismo. O próprio Helio chegou a dizer: «O mal vem da boca. Não é deixarmos de comer o que sabe bem, mas sim o que faz mal ao organismo.» O objectivo é manter o pH das refeições e principalmente não misturar cereais entre si, gordura com açúcar nem alimentos ácidos. Mais: fazer refeições com intervalos de quatro horas e só voltar a alimentar-se quando o estômago estiver vazio. Depois, a dieta privilegia os chás e as ervas como base da cura de todos os males.

‘Marginais’: vingança, lutas ilegais e amor num ‘cocktail’ nacional

Carlos (José Fidalgo) e Lucas (Fernando Martins) são dois irmãos que o destino tratou de afastar em Marginais, o novo filme português que se estreia no cinema esta quinta-feira, 16 de Setembro, dirigido pelo realizador Hugo Diogo, com um enredo de vidas cruzadas nos subúrbios de Lisboa onde o Jiu-Jitsu tem uma palavra forte a dizer. Lucas é sociável, trabalha num clube de vídeo, namora com Maria (Patrícia André), com quem planeia casar e viver a vida, e procura fazer as pazes consigo mesmo pelo facto de ter causado involuntariamente a morte da mãe num acidente de carro. Carlos, pelo contrário, é perigoso e instável, tem um ginásio clandestino onde dá aulas de Jiu-Jitsu durante o dia e guarda as noites para participar em lutas de rua ilegais em que ganha algum dinheiro. Nunca conseguiu perdoar Lucas pela morte da mãe, razão por que se afasta do irmão alimentando a ideia de vingança.
«Marginais iniciou a sua rodagem [em Lisboa e no Seixal] em Outubro de 2007 e durante 22 dias, 16 horas por dia, o filme foi ganhando forma», conta Hugo Diogo, seguro de que será difícil ficar indiferente a toda aquela teia de violência, paixão, marginalidade, lutas ilegais, sexo e amor. «É um filme com uma energia forte e um ritmo que não é usual no cinema», revela o realizador que tem boas expectativas relativamente à aceitação do público uma vez que a longa tem a dinâmica viva dos telefilmes e muito rap que vai «deixar o espectador descomprimir de toda a velocidade da trama.» T: ANA PAGO

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