Jim Morrison: um cometa nascido há 80 anos

Desaparecido há mais de 50 anos, o jovem poeta, tímido e antissocial, que se tornaria numa das mais icónicas figuras do rock dos anos 1960, continua a ser admirado e celebrado como um espírito atormentado que produziu, como autor e como intérprete, uma obra intemporal.
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A 8 de dezembro de 1943 nascia na Florida (EUA) James Douglas Morrison, o primeiro dos três filhos de um oficial de Marinha frequentemente ausente em comissões de serviço. Não teríamos chegado a conhecer o personagem não tivesse ele abandonado os estudos de cinema e, aos vinte e poucos anos de idade, fundado com um colega mais velho a banda The Doors - de que é indissociável -, alcançando o pedestal da celebridade em pouco mais de três anos, desde a saída do primeiro álbum (1967) até à sua morte em 1971.

Considerado um jovem indomável, rebelde e instável (eventualmente em consequência das várias mudanças de residência e de escola, por razões familiares), mas muito inteligente, Morrison é unanimemente lembrado como um ávido leitor, muito influenciado pelos poetas beat que marcaram fortemente a sua geração - Kerouac, Ginsberg, Ferlinghetti - interessado também em Nietzsche e nos simbolistas franceses. Neste terreno fértil para a experimentação poética junta-se, desde cedo, o consumo de álcool que em breve se estenderia a certas drogas inovadoras e consideradas benéficas para a expansão da mente, tudo confluindo na sua personalidade psicótica.

Não havendo grandes informações sobre a infância de Jim, há contudo notícias da sua vida de estudante e da sua decisiva mudança para a Califórnia, para estudar cinema na universidade. Aqui, em Venice Beach, acabou por se dar o famoso encontro fortuito com Ray Manzarek (1939-2013), cofundador e teclista dos The Doors, o que desencadeou em ambos a vontade de unir esforços e tocar juntos numa banda, dando assim início à carreira musical de Morrison.

Com mais dois instrumentistas - Robby Krieger (1946), guitarra, e John Densmore (1944), bateria - os The Doors nasceram em 1965, na formação de quarteto com que se tornariam famosos, curiosamente abdicando de guitarra baixo. O repertório incluía canções originais, muitas com letras de Morrison, numa linguagem que veio a ser reconhecida como muito original e com elevado potencial poético. O nome da banda terá sido proposto pelo cantor aludindo inequivocamente ao livro de Aldous Huxley, The Doors of Perception (1954), o qual se debruçava sobre os efeitos alucinogénicos de uma substância então considerada benigna e até promissora, a mescalina.

Nos anos 1950 estava quente o debate científico sobre esta substância proveniente de um cato que se encontrava no México, tradicionalmente usada para fins rituais/espirituais, procurando terapêuticas para certas doenças do foro psiquiátrico. Do mesmo modo, o LSD (ácido lisérgico) era visto como potencial auxiliar da medicina, sendo mesmo disponibilizado pela indústria farmacêutica, gratuitamente, aos investigadores interessados em estudá-lo. As descrições das alucinações psicadélicas vivenciadas sob o efeito destas drogas tornaram-nas, na década seguinte, muito desejáveis pelos jovens que procuravam um escape à vida convencional, sendo frequentemente referidas nos meios artísticos da época como facilitadoras de criatividade.

O som inconfundível dos teclados de Manzarek, que tinha tido formação clássica em miúdo, contribuía para a originalidade de uma banda cujo protagonista principal era o vocalista. Este assumia-se como um intérprete imprevisível, muito teatral, temperamental e provocador, e explorava a sua capacidade de improvisação de texto, falado ou cantado, algo até então inédito num grupo de rock. Algumas das suas letras eram profundas, arrebatadoras e extremamente cativantes para o público, que fervilhava de expectativa com o inesperado de cada atuação.

Durante quase dois anos, os The Doors ganharam tarimba tocando em clubes e espaços pequenos, criando também a fama que faria deles um grupo icónico - tanto para os admiradores e seguidores, como por parte das autoridades, que tentavam reiteradamente controlar o vandalismo e os desacatos que as suas atuações provocavam, muitas vezes incentivados pelo próprio cantor, que se apresentava progressivamente mais descontrolado em palco.

Com a gravação do primeiro álbum, The Doors (1967), e o sucesso imediato de Light my Fire (Krieger/Doors), em n.º 1 nas tabelas de vendas, o grupo assumiu-se finalmente como profissional, passando a ser contratado para atuar em grandes recintos e salas de espetáculo por onde passavam os nomes mais famosos. Mas com o agravamento dos consumos de álcool e drogas de Jim - que por vezes parecia mal se aguentar nas pernas durante as atuações - e com o desencadear de situações mais extremas em palco e fora dele, o cantor era vigiado de perto pelas autoridades enquanto atuava, sendo cada vez mais alargados os efetivos policiais para conter a multidão.

Todos estes episódios, que noutra época e num contexto diferente seriam considerados anómalos e intoleráveis, na verdade contribuíam para criar uma imagem idolatrada de irreverência, audácia e desafio que atraía uma vasta audiência jovem, em busca de criatividade e liberdade artística sem limites. Efetivamente a reputação dos The Doors não parece ter declinado nem mesmo quando Morrison foi preso em palco durante um concerto, perante uma plateia repleta, ou quando certos promotores cancelaram os seus espetáculos ou baniram a banda da sua programação devido aos elevados prejuízos que os desacatos geravam.

Mas os The Doors sobreviveram, gravando um total de seis álbuns de estúdio entre 1967 e 1971, para os quais trabalhavam intensamente entre digressões de dezenas de concertos, compondo material original e arranjando músicas de outros autores ajustando-as à sua linguagem musical. O álbum Waiting for the Sun (1968), o único que alcançou o n.º 1 das tabelas, voltou a incluir um single n.º 1, a polémica Hello, I Love you, que levantou suspeitas de se basear em material alheio pré-existente, vulgo plágio. Neste álbum encontra-se também um tema, provavelmente menos célebre mas de certa forma curioso por referir o nosso país, Spanish Caravan, que começa com um extenso solo de guitarra clássica/flamenco, cuja letra refere "take me to Portugal take me to Spain".

Se são muitos os temas dos The Doors que se tornaram clássicos ao longo de mais de 50 anos de sucesso - Break on Trough (to the Other Side) (The Doors, 1967), Turn Out the Lights (Strange Days, 1967), entre muitos, muitos outros -, Riders on the Storm (L.A. Woman, 1971), com aquela misteriosa voz sussurrada dobrando a voz principal e os teclados idiossincráticos de Manzarek, continua a destacar-se pela originalidade sonora e pelo ambiente soturno, quase arrepiante, além de conter a carga simbólica de ter sido a última gravação dos The Doors com Jim Morrison.

Há certamente muitos estudos e estudiosos que se têm debruçado sobre os fenómenos sociais que levam ao culto de celebridades, mesmo que efémeras, caso de Morrison, ao longo do tempo e mesmo depois da sua morte. Mas não há teoria que consiga explicar cabalmente o que leva milhares de indivíduos, em diferentes partes do mundo, a reagir de forma idêntica quanto ao sentimentalismo e admiração por uma personagem ou grupo a quem atribuem uma forte carga emocional.

A música é, sem dúvida, um fator preponderante. Mas a imagem sensual de Jim Morrison, a sua teatralidade a cantar, as provocações, o conteúdo das letras que escrevia e os muitos e muitos cadernos de poemas que deixou manuscritos - alguns publicados postumamente -, juntamente com uma biografia lacunar e tornada misteriosa com mentirinhas e omissões, certamente alimentaram o mito. A sua morte prematura, longe de casa e do país, afastado que estava da banda, quase se tornou numa lenda antes da confirmação inexorável da verdade nua e crua.

A qualidade do trabalho de equipa entre os elementos dos The Doors, que continua a ser considerado muito bom, terá contribuído para que se continuem a ouvir as suas canções sem enfado nem complacência, tantas décadas passadas, revelando-se cuidado e minucioso, recorrendo a diversos estilos e géneros musicais para construir um som próprio e distinto. Uma banda que, com a experiência, ia dando mais e mais margem para as improvisações do vocalista, chegando também a substitui-lo ocasionalmente (Krieger e Manzarek) quando ele não aparecia ou não estava capaz de subir ao palco e cantar.

A figura de Jim Morrison é, de certa forma, indissociável das dos seus contemporâneos Jimi Hendrix e Janis Joplin, todos falecidos no auge de uma promissora carreira musical, aos 27 anos de idade, em diversas partes do globo: no espaço de dez meses morreu Jimi em Londres (set./70), Janis em Los Angeles (out./70) e Jim em Paris (jul./71), afetando fortemente toda uma geração que, de algum modo, via o ideal hippie esfumar-se à luz da fria realidade.

Cada um deles à sua maneira encarnou uma personalidade artística única, ousada e inovadora, descartando mesmo condicionalismos da tirânica indústria discográfica - a que no fundo todos aspiravam aceder, para forjar uma carreira de dimensão universal -m Hendrix criando uma linguagem própria na guitarra elétrica, Joplin como intérprete vocal sem tabus nem restrições, num feudo quase exclusivamente masculino, e Morrison, poeta, com as suas letras originais, musicadas pela banda e para a banda. Todos eles estabeleceram relações fortíssimas com um público que procurava alternativas à música banal e comercial, tentando libertar-se do jugo da tradição, fruto dos ideais que acabariam por passar à História como Contracultura.

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