Jihadistas em Moçambique mudam ataques para Niassa e obrigam milhares a fugir de suas casas

Quase 4.000 moçambicanos fugiram das suas aldeias no último mês devido à intensificação dos ataques jihadistas em Niassa, uma província vizinha de viveiro da insurgência em Cabo Delgado, disse esta sexta-feira um funcionário do governo moçambicano.
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Os militantes jihadistas que aterrorizaram a província de Cabo Delgado, rica em gás, nos últimos quatro anos, desviaram nas últimas semanas os seus ataques para oeste, em Niassa.

"Há 3.803 deslocados até agora. São pessoas que fugiram das áreas alvo dos ataques no distrito de Mecula", disse à AFP por Felismino Patrício, porta-voz do governo na província de Niassa.

Os últimos deslocados somam-se aos mais de 820.000 que fugiram da insurgência em Cabo Delgado desde 2017.
A província de Niassa tornou-se, desde o final de novembro, o último alvo de militantes expulsos de Cabo Delgado pelas tropas intergovernamentais.

Desde julho, mais de 3.000 soldados foram destacados pelo Ruanda e pelas 16 nações da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral para ajudar o sitiado exército moçambicano a expulsar os terroristas.

Os jihadistas lançaram a sua primeira incursão no distrito de Mecula, na província de Niassa, no final de novembro. Desde então, realizaram ataques esporádicos em várias outras aldeias, provocando cerca de duas dezenas de vítimas mortais. Os deslocados têm procurado abrigo na cidade de Mecula, onde são realojados em escolas do governo ou em casas de parentes e amigos.

"Todos os dias chegam pessoas das aldeias que fogem dos ataques", disse um morador da cidade de Mecula à AFP, por telefone, pedindo para não ser identificado.

Regina Atanasio, de 30 anos, saiu à pressa da sua aldeia de Lichengue, a 15 de dezembro, após ataques jihadistas. "Eles começaram a atacar a aldeia às 18 horas e então o meu marido e eu fugimos com os nossos filhos", disse também ela à AFP, por telefone.

Um inspetor de polícia foi morto e dezenas de pessoas foram sequestradas durante um ataque a 23 de dezembro, de acordo com o governo local.

Outro morador disse que mulheres foram sequestradas na última operação jihadista, conhecida na última segunda-feira (27) na vila de Alassima, a cerca de cinco quilómetros da cidade de Mecula.

O presidente moçambicano, Filipe Nyusi, disse na quinta-feira (30) que os rebeldes que atacaram Niassa vão ter a resposta que merecem, considerando que as incursões naquela província são promovidas por insurgentes que fogem das ofensivas das forças governamentais em Cabo Delgado.

"Alguns [insurgentes] estão a fugir [de Cabo Delgado] para Niassa por muitas razões, uma delas é a comida. Eles estão com problemas sérios de alimentação. Mas garanto que eles vão ter a resposta que merecem", disse à comunicação social estatal Filipe Nyusi, a partir de Mbau, Mocímboa da Praia, no âmbito de uma visita que realiza a província de Cabo Delgado.

Para o chefe de Estado moçambicano, o alastramento do conflito para a nova província mostra o desespero dos rebeldes, que têm estado a registar várias baixas, incluindo entre os líderes dos grupos insurgentes.

"Na semana passada, por exemplo, durante uma emboscada das nossas forças, foi abatido um [líder] deles e outros vão ficar. Eles estão a ser corridos daqui [de Cabo Delgado]", frisou o chefe de Estado moçambicano.

A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas tem sido aterrorizada desde outubro de 2017 por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo 'jihadista' Estado Islâmico.

O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 817 mil deslocados, de acordo com as autoridades moçambicanas.

O investigador moçambicano João Feijó defende que o alastramento da insurgência para o Niassa mostra que a guerra vai levar mais tempo, reiterando que o problema dos rebeldes no norte de Moçambique não será ultrapassado apenas pela via militar.

"Isto significa que esta guerra se está a radicalizar cada vez mais e que vai levar muitos anos para ser resolvida", declarou João Feijó, pesquisador do Observatório do Meio Rural (OMR), em entrevista à Lusa em Maputo.

Em causa estão os sinais de alastramento da insurgência para a província do Niassa, vizinha de Cabo Delgado (norte de Moçambique), que começaram neste mês, com ataques esporádicos a pontos recônditos que provocaram a fuga de cerca de 3.000 pessoas e a morte de, pelo menos, outras cinco.

Para João Feijó, que está entre os investigadores moçambicanos que se têm dedicado exaustivamente ao estudo da guerra, o alastramento do conflito mostra que a aposta numa solução militar não é a resposta adequada, na medida em que há vários pontos do norte de Moçambique que têm condições para proliferação do radicalismo.

"Enquanto apostarmos na via militar e nos esquecermos de outras opções, as políticas e estruturais, vai ser difícil resolver esta questão. Estamos a tentar apagar este fogo com gasolina", alertou Feijó, lembrando que a estratégia de alastrar o conflito quando se está sob pressão é típica de movimentos de guerrilha e a própria Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), partido no poder, usou-a durante a luta contra o regime colonial português.

O pesquisador moçambicano entende que o alastramento do conflito era previsível, principalmente para o Niassa, tendo em conta que uma parte dos rebeldes que conduziram a insurgência nos últimos quatro anos são oriundos daquela província, além de Nampula, outra província vizinha de Cabo Delgado.

"Eles têm ligações de recrutamento com o Niassa e a província tem ótimas condições para a movimentação de guerrilha, sobretudo na zona de fronteira e na zona da Reserva do Niassa. Eles ali podem caçar e se alimentar, além de várias aldeias isoladas onde podem saquear, raptar e roubar e é uma zona também de garimpo ilegal, que pode ser usado para financiar a guerrilha", acrescentou.

Por outro lado, prosseguiu João Feijó, a internacionalização da guerra, com a entrada de tropas estrangeiras para apoiar Moçambique, abre um novo argumento para que os rebeldes procurem apoios, sob pretexto de se estar perante uma "cruzada" regional "contra os islâmicos".

"A partir do momento em que entram aqui tropas estrangeiras estão criadas as condições para que eles alimentem uma propaganda segundo a qual isto é uma cruzada contra os islâmicos", frisou.

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