Jesus: O "chato" que só gosta de falar de futebol vai voltar a casa

Antigo colega e jogadores recordam ao DN as passagens do atual técnico do Benfica pelo Estrela da Amadora, na véspera do seu regresso à Reboleira para os oitavos-de-final da Taça.
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Quase 12 anos depois, Jorge Jesus vai regressar ao Estádio José Gomes, na Amadora, onde iniciou a carreira no futebol. Quis o destino que, no sorteio das bolas tiradas por Rebelo, ex-jogador que representou o Estrela durante 14 temporadas - duas delas sob o comando do atual técnico do Benfica -, os encarnados tenham de defrontar amanhã o novo Club Football Estrela, herdeiro direto do Estrela da Amadora extinto em 2011, nos oitavos-de-final da Taça de Portugal.

Será a primeira vez que estará em "casa" como treinador de um dos grandes (na última comandava o Sp. Braga, tendo empatado a dois golos em março de 2009), depois de uma carreira onde passou quatro vezes pelos tricolores: duas como jogador (foi lá que começou nos juvenis, antes de voltar já numa fase avançada, com três épocas na II Divisão nos anos 1980) e outras tantas como técnico (entre 1998 e 2000 e conseguindo dois oitavos lugares, e um regresso a meio da época 2001-02 com o clube na II Liga, saindo antes do final da temporada seguinte, num total de 116 jogos no banco tricolor).

Amílcar da Fonseca, central que passou por Oriental, Estoril, Belenenses e Portimonense (que também treinou), foi um dos colegas de Jesus quando o então médio voltou à Reboleira, e ainda hoje se orgulha da amizade que mantém com ele. A viver no Algarve e mais interessado em jogar golfe - "sou um craque! Se tecnicamente tivesse sido tão bom a jogar à bola como sou no golfe não havia dinheiro para me pagar", diz ao DN enquanto se ri ao telefone -, o ex-futebolista garante ter uma dívida de gratidão para com o antigo companheiro. "Foi ele que me ajudou a conquistar a mulher com quem sou casado. Quando vínhamos jogar ao Algarve, duas ou três vezes por época, ficávamos em Albufeira e eu ia ter com ela. Só que ela tinha de ir com uma amiga e o Jesus vinha beber um café comigo para nós conseguirmos ficar sozinhos", recorda entre gargalhadas.

Se o papel de "cupido" é um bocado surpreendente, já a obsessão do técnico pelo jogo nem tanto. "O Jesus sempre foi um gajo muito chato porque ele era o treinador dentro do campo. Mas no bom sentido, não estava a querer passar a perna ao treinador ou a contrariar as ordens. Ele só gosta de falar de uma coisa: futebol. Se o encontro em qualquer lado, tenho a certeza de que vamos falar de futebol", refere o antigo futebolista, que partilhou balneário duas épocas com Jesus, garantindo que o "Carinhas" ("era essa a alcunha dele, não me venham cá com outras") era também um jogador de qualidade.

"Quando as pessoas falam do Jesus jogador estão completamente enganadas, porque passam a mensagem de que ele era um jogadorzinho. Nada disso! Era um grande jogador, a única coisa que lhe faltava para atuar num grande era aquilo que tem agora como treinador, a agressividade. Pontificava muito bem o jogo e com os pés era uma maravilha a médio-centro. Se fosse tão agressivo como jogador como é como treinador, muito dos jogos que perdemos não teríamos perdido. O jogador Jesus com o treinador Jesus nem que tivesse um contrato de 20 anos, ele metia-o na rua, mesmo com uma cláusula de milhões. Eu acho que o Jesus jogador não dava mais rendimento porque levava a vida a pensar no jogo, no sistema, nas táticas... apetecia-me bater-lhe. É uma pessoa deliciosa, tirando esse "defeito" é espetacular, sociável, que gosta de rir... Mas é isso, se queres falar sobre futebol ficas, se não queres é melhor ir embora."

Sem exceções? "É melhor não ir por aí, ele é casado, eu sou casado, ainda somos os dois postos na rua... Mas nós éramos duas brasas", volta a rir Amílcar.

Jorge Andrade cruzou-se com Jesus quando este se afirmava como técnico. Lançado por Fernando Santos na primeira equipa - os dois técnicos estão profundamente associados à história do clube da Amadora e hoje têm até direito a um mural no balneário -, foi com o atual técnico do Benfica que o central conquistou vaga na primeira equipa. Mas não sem antes passar as "passas do Algarve" e fazer um "estágio" como trinco.

"Num treino de finalização de cruzamentos, tinha de marcar um avançado que era o capitão e todos deram em golo. O Jesus mandou-me sair: "Sai, sai que tu não sabes defender." Tirou-me do exercício e fiquei sem fazer nada. "Vai lá pensar na vida, porque não sabes defender." A partir dali, no treino a seguir, começou a pôr-me a médio, naquilo a que ele chama a posição 4. Com ele comecei a jogar como médio defensivo", recorda o antigo internacional português, que hoje está agradecido: "Precisava de aprender os princípios fundamentais para depois ir para uma posição de responsabilidade. Se um central falhar, só sobra o guarda-redes, e num jovem de 20 anos isso pode afetá-lo mentalmente e prejudicar a própria carreira..."

Formado no Estrela, onde chegou com 8 anos, Andrade recorda outro "choque" com o mister: "Num jogo-treino em Odivelas, estava a fazer reparos ao meu posicionamento. Fazia dupla com o Raul Oliveira e achei injusto ele só fazer reparos à minha forma de jogar e reclamei. Ele mandou-me passear e eu mandei-o passear de volta, à moda da Amadora. Respondi de forma agressiva e ele tirou-me do campo. Mas não foi rancoroso porque na segunda parte voltei a entrar."

Por isso, Jorge Andrade refere que apesar das "explosões", Jesus apreciava a discussão. "Muitas vezes, quando um jogador o confrontava com uma opinião diferente, ele aceitava e dizia "podes ter razão". O que é interessante, porque mostra que não é intransigente. Gosta que os jogadores, mesmo nas palestras, o confrontem com ideias diferentes", assinala.

E, por falar em palestras... muitas vezes resultavam em momentos divertidos devido à conhecida forma de falar, digamos descontraída, de Jesus. "Tínhamos o Pedro Simões e sempre que existia um jogador estrangeiro, o mister já nem arriscava dizer o nome. "Pedro, como é que se chama este?" Às tantas, ele já nem precisava disso, porque o Pedro Simões saltava automaticamente para a linha da frente para ajudar o mister", lembra Jorge Andrade, no que é secundado por Rebelo, um dos jogadores mais experientes desse plantel e atual membro do Sindicato dos Jogadores: "É verdade. As palestras deles eram muito sugestivas, porque não acontecia uma vez, era sempre assim. Mas o Jesus também estava à vontade com isso. Dava cada calinada... e nós ali, na palestra, estávamos muito contidos, até não aguentarmos mais. Mas ele nunca se chateou. Uma equipa adversária com um nome estrangeiro era sempre complicado. Fazia parte da nossa união, o Jesus é muito natural, terra a terra, e continua assim. Ele é assim, não se faz assim, e isso ajudou a criar uma relação muito boa com ele."

Assumindo-se como o "culpado" do jogo de amanhã, Rebelo vai estar presente no José Gomes como convidado e seguramente irá recordar os "muitos momentos inesquecíveis" e sobretudo a exigência nos tempos de Fernando Santos e Jesus. "Embora fossem diferentes, tinham muitas coisas parecidas... A carga de trabalho, era qual deles o pior. Não nos davam descanso, devem ter andado na mesma "escola" [risos]. Levávamos cada coça! Mas depois tirávamos partido disso, tanto um como o outro fizeram trabalhos fantásticos", refere o ex-capitão, para quem este novo Estrela pode causar dificuldades a um Benfica distante do seu potencial: "Basta ver a classificação [Estrela lidera o seu grupo no Campeonato de Portugal]. Na minha carreira também fui eliminado por equipas de escalões inferiores, há sempre aquela tendência de pensar que mais cedo ou mais tarde o golo acontece mas depois as coisas não dão e tu queres e já não consegues."

Opinião, de resto, partilhada pelo seu antigo companheiro Jorge Andrade: "Frente ao Farense, o Estrela demonstrou uma maturidade ao nível do jogo que só se encontra em equipas da I Liga."

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