Jesus agita o Brasil, 65 anos depois da revolução de Otto Glória em Portugal

Não foram muitos os treinadores brasileiros a ter sucesso em Portugal, mas o que maior impacto teve foi Otto Glória que lançou as bases do profissionalismo do futebol português. Mais tarde Scolari também criou um novo espírito de seleção. Jorge Jesus tem agora a oportunidade de mudar a história nesta relação entre os dois países.<em>(T</em><em>exto</em><em> originalmente publicado a 23 de novembro)</em>
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Jorge Jesus pode deixar este fim de semana uma marca profunda no futebol brasileiro, com a conquista dos dois mais desejados títulos pelos adeptos do Flamengo em apenas dois dias. Este sábado terá pela frente os argentinos do River Plate na final da Taça Libertadores que se realiza em Lima, capital do Peru, e no domingo poderá confirmar o título de campeão brasileiro desde que o Palmeiras não vença, em casa, o Grémio.

O treinador português, de 65 anos, está na iminência de romper com o jejum de 38 anos sem que o popular clube do Rio de Janeiro tenha vencido a Libertadores e outro de dez anos sem conquistar o Brasileirão. Ou seja, se concretizar este feito, ficará para sempre na história do clube onde Zico está eternizado. E tudo porque levaria o Flamengo a um feito que nenhum outro clube do Brasil alcançou: ser campeão brasileiro e sul-americano no mesmo ano.

Jorge Jesus tem tudo para ser o primeiro treinador português a ter impacto no futebol brasileiro, um pouco à semelhança de Otto Glória que a 24 de junho de 1954 cruzou o oceano Atlântico para revolucionar o futebol do Benfica e, ao mesmo tempo, iniciar um processo de profissionalização do futebol em Portugal.

O Benfica vinha de quatro épocas a ver o Sporting ser campeão e o presidente Joaquim Ferreira Bogalho decide ir contratar aquele que era, na altura, treinador adjunto de Flávio Costa no Vasco da Gama. A missão era mudar a face do futebol encarnado através dos seus vastos conhecimentos e conceitos, muitos deles inspirados no basquetebol, modalidade que praticou durante alguns anos.

Otto Glória, o disciplinador com afeto

Otto Glória tinha apenas 38 anos, mas o seu impacto foi imediato, com a introdução de um conjunto de regras que colocaram o Benfica na rota da modernidade. Criou o Lar do Jogador, impôs horários e promoveu a realização de estágios com regras bastante rígidas, nos quais os jogadores estavam proibidos de jogar às cartas, aos dados e até de falar calão. Além disso, proibiu a entrada do presidente no balneário e introduziu um novo sistema tático, o 4x4x2, que estava muito em voga no Brasil.

"O Otto Glória revolucionou as mentalidades do futebol português, o Lar do Jogador, por exemplo, era algo inovador. Com ele são consolidados os princípios do profissionalismo, com treinos muito mais rigorosos e com uma liderança disciplinadora, mas ao mesmo tempo com o afeto próprio dos brasileiros. Ele sabia equilibrar muito bem a disciplina e o afeto para com os jogadores", recorda António Simões, que durante vários anos foi treinado por este carioca no Benfica e na seleção nacional.

Na prática, o segredo do sucesso de Otto Glória era, não apenas os conceitos do profissionalismo, mas sobretudo "o jeito que tinha para comunicar na relação com os jogadores", pois a nível do treino "não era muito diferente do que se fazia em Portugal", acrescenta Simões, reforçando uma ideia que é muito característica do povo brasileiro: "Ele compensava a exigência, com uma maior aproximação aos jogadores, criando esse compromisso de família que anos mais tarde vimos também com Luiz Felipe Scolari na seleção nacional."

O currículo de Otto Glória em Portugal é notável, com a conquista de seis campeonatos - quatro no Benfica e dois no Sporting, embora em 1961/62 tenha saído no início da época em Alvalade -, e ainda cinco Taças de Portugal (uma no Belenenses e quatro no Benfica, embora em 1958/59 não tenha orientado a final). Além disso, foi o selecionador nacional que conduziu a equipa das quinas ao terceiro lugar no Mundial de 1966.

António Simões compara a importância que Otto Glória teve no final da década de 1950 e o impacto que Jorge Jesus está a ter neste momento no futebol brasileiro, ao comando do Flamengo. "O Jesus também fez uma revolução no Brasil, mas pelo conhecimento do jogo e pelo convencimento porque conseguiu convencer os jogadores que também era preciso correr para trás, não apenas para a frente. Na prática, mostrou-lhes que não basta saber jogar, é preciso também saber competir", assume o antigo jogador, fazendo votos que os treinadores brasileiros tenham a mesma capacidade que os portugueses tiveram quando Otto Glória chegou a Portugal. "Oxalá aproveitem esta abordagem que Jorge Jesus está fazer porque se souberem competir vão ganhar mais vezes", frisou.

Scolari, o criador de um novo conceito de seleção

Scolari foi outro treinador brasileiro que deixou marca no futebol português. Chegou em 2003 para orientar a seleção nacional, um ano depois de se ter sagrado campeão do mundo pelo Brasil. O objetivo era claro: conquistar o Euro 2004 que se realizaria em Portugal. Não o conseguiu, mas tornou-se no primeiro selecionador a levar a equipa das quinas a uma final, perdida no Estádio da Luz, diante da Grécia.

Apesar da desilusão, Felipão, como também é conhecido, continuou no cargo, levando a seleção nacional ao quarto lugar do Mundial 2006, tendo terminado o seu percurso no Euro 2008 após ser eliminado nos quartos-de-final pela Alemanha.

No total foram 42 vitórias em 74 jogos, alguns dos quais muito marcantes, mas a herança que deixou foi muito mais além do que isso. "Um dos grandes méritos que tem foi o de ter aproximado a seleção nacional dos adeptos, que andavam um pouco desligados da equipa nacional. Uniu-os a uma geração fantástica que esteve no topo das grandes competições", começa por dizer Hélder Postiga, antigo avançado que esteve presente nas três fases finais sob o comando de Scolari. E quem não se lembra das bandeiras nas janelas, uma moda criada no Euro 2004 e que se prolongou por alguns anos?

Contudo, na opinião de Postiga houve outro grande mérito do brasileiro. "Conseguiu erradicar a clubite dentro da seleção, que era algo que se verificou nas décadas anteriores, criando um grupo homogéneo e harmonioso", destaca, considerando ainda que esse facto foi "importante para aquilo no que se tornou a seleção nos anos que se seguiram". Na prática, as habituais guerras entre os principais clubes portugueses passaram a ficar à porta e a equipa das quinas criou uma identidade própria, que se traduziu "num grupo unido e coeso", ao qual muitas vezes foi chamado de família Scolari.

CAS e Yustrich marcaram os dragões

Além de Otto Glória e Scolari, não foram muitos os treinadores brasileiros a ter sucesso no futebol português. Um deles foi Carlos Alberto Silva, contratado pelo FC Porto em 1991 para dar continuidade a uma herança pesada de Artur Jorge, acabou por conquistar dois títulos de campeão nacional e uma supertaça nas duas épocas ao serviço dos dragões, durante as quais comandou uma equipa que praticava um futebol muito pragmático e pouco virado para o espetáculo.

Carlos Alberto Silva, tantas vezes tratado por CAS, chegou ao Porto depois de ter representado alguns dos maiores clubes do Brasil, mas também a seleção principal e a olímpica, pela qual conquistou a medalha de prata nos Jogos de 1988. Acabou por regressar a Portugal em 2004 para o Santa Clara, mas não conseguiu evitar a descida dos açorianos à II Liga.

Contudo, o treinador brasileiro mais marcante para o FC Porto terá sido Dorival Knipel, mais conhecido por Yustrich, que em 1955 chegou ao clube para colocar ponto final a uma série de 16 anos sem vencer o campeonato nacional. Não só devolveu o título aos dragões, como também conquistou a Taça de Portugal, naquela que foi a primeira dobradinha do clube. Só que Yustrich tinha uma personalidade muito difícil, como prova o facto de em 1953 ter sido expulso do Atlético Mineiro pelos próprios jogadores devido a uma série de conflitos.

No FC Porto só esteve uma época por causa disso mesmo, tendo ficado famoso o desentendimento com Hernâni Silva, uma das estrelas da equipa, por não ter cumprido a ordem de ir agradecer aos adeptos no final de um jogo com o Oriental, gerando-se uma troca de socos entre ambos que acabaria por contribuir para a saída do técnico no final da época.

Marinho Peres: uma Taça e 222 jogos na Liga


Outros dois treinadores brasileiros tiveram passagens por Portugal com a conquista da Taça de Portugal. Foi o caso do militar gaúcho Otto Bumbel, que depois de ter conduzido o Lusitano de Évora a um brilhante quinto lugar no campeonato em 1956/57, mudou-se para o FC Porto no final da época seguinte para conquistar a Taça. Também Marinho Peres teve essa honra de erguer o segundo troféu mais importante do futebol português, foi ao serviço do Belenenses na época 1987/88, precisamente a última conquistada pelo clube do Restelo.

Marinho Peres é atualmente o segundo treinador brasileiros com mais jogos na I Liga, totalizando 222 distribuídos por V. Guimarães, Belenenses, Sporting e Marítimo, sendo apenas batido por Otto Glória que orientou 306 partidas ao serviço de Benfica, Belenenses, Sporting e FC Porto. Osvaldo Silva, que chegou a Portugal como avançado e por cá ficou até se tornar treinador, encontra-se no terceiro lugar deste ranking com um total de 180 partidas, mais seis que Paulo Autuori. O top 5 fecha com Abel Braga (92), que curiosamente era o treinador do Flamengo antes de Jorge Jesus chegar ao clube do Rio de Janeiro para fazer história.

[Texto originalmente publicado a 23 de novembro]

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