Jéssica "perdeu o direito à infância de uma forma medieval"

Juiz Pedro Godinho não poupou nas palavras na leitura do acórdão. Quatro dos cinco arguidos do Caso Jéssica, incluindo a mãe da criança, foram condenados à pena máxima de prisão pelo Tribunal de Setúbal. Pai da menina recebe 50 mil euros de indemnização.
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"A pergunta que não sai da cabeça é porquê?". Foi com esta questão que Pedro Godinho, juiz presidente do coletivo de juízes responsável pelo Caso Jéssica, rematou a leitura do acórdão no Tribunal de Setúbal que condena os quatro principais arguidos - a mãe de Jéssica Biscaia, Inês Sanches, a suposta ama, Ana Pinto, o seu marido, Justo Montes, e a filha, Esmeralda Montes - a 25 anos de prisão (a pena máxima aplicada em Portugal) por homicídio qualificado por omissão.

A sentença foi proferida cerca de um ano após a morte da menina de três anos, tendo António Fialho, juiz-presidente do Tribunal de Setúbal, destacado a "celeridade" com que se chegou a uma decisão: "Esta menina faleceu o ano passado, no dia 20 de junho, o processo terá começado um ou dois dias depois e, efetivamente, hoje, dia 1 de agosto, temos uma decisão de primeira instância, que, de certa forma, declara o direito relativamente àquilo que o Tribunal de Setúbal entendeu que se passou".

Em relação a um quinto acusado, Eduardo Montes, filho da alegada ama, o Ministério Público deixou cair todos os crimes que constavam do despacho de acusação e o tribunal absolveu-o.

O caso de violência que chocou o país em junho de 2022 levou à morte de Jéssica, "um ser humano indefeso que perdeu o direito à infância de uma forma medieval", afirmou Pedro Godinho na leitura do acórdão, reforçando: "Era um ser humano indefeso. Não há nenhuma comunidade no mundo que tolere o que foi feito, nem em qualquer parte da História. Podemos recuar à Idade Média ou à Pré-História".

De acordo com o juiz, o julgamento foi alvo de "várias peripécias" e o caminho até à verdade sobre o que aconteceu à criança foi conturbado uma vez que os arguidos não relataram todos os factos. "Quem lá esteve não quis contar o que aconteceu e o pouco que disse eram mentiras", frisou. Aliás, a única testemunha "que falou" sobre o que verdadeiramente aconteceu foi Jéssica, através dos exames médico-legais que foram realizados depois da sua morte. "Felizmente tivemos a ajuda da ciência", sublinhou Pedro Godinho, confirmando que a investigação determinou que durante os cinco dias em que a criança esteve entregue à família Montes foi sujeita a mais de 70 pancadas e picadas, além de queimaduras na face, violentos puxões de cabelos e três fortes embates com a cabeça numa superfície dura. Além disso, foi também exposta a várias substâncias ilícitas, entre as quais cocaína, metadona e paracetamol.

Jéssica morreu devido aos maus-tratos a que foi sujeita enquanto permaneceu na casa da ama, Ana Pinto, como garantia de pagamento de uma dívida da mãe, de 200 euros, por alegadas práticas de bruxaria. Durante cinco dias, a menina de três anos foi sujeita a vários episódios violentos, apresentando lesões em todo o corpo, e foi usada como correio de droga. A criança só foi devolvida à mãe no dia 20 de junho de 2022, numa altura em que já não reagia a qualquer estímulo.

Conforme a procuradora do Ministério Público (MP) descreveu, a família Montes só terá entregue a criança "porque recearam que ela morresse em casa" - situação também apontada pelo juíz, que acusou Ana Pinto, Justo Montes e Esmeralda Montes de ligar insistentemente para a mãe, para que Jéssica não morresse com eles. A família viajou depois para Leiria, fugindo à responsabilidade do crime que cometeram.

Por sua vez, Inês Sanches, que nada fez para impedir o sofrimento da filha, terá ignorado os sinais de maus-tratos, facto que a investigação considerou que poderá ter contribuído para a morte da criança, que ocorreu poucas horas depois no Hospital de São Bernardo, em Setúbal. Nesse sentido, a mãe foi também condenada por violação grosseira do dever de garante da saúde da filha.

Relativamente ao pedido de indemnização pedido por Alexandrino Biscaia, o pai da criança (separado da mãe e emigrante nos Países Baixos), o tribunal atribuiu um valor de 50 mil euros, considerando que este foi um "pai simbólico" e que também falhou na proteção da menina, tal como o Estado português. "O tribunal entendeu que nem o pai, nem a mãe, nem o Estado são dignos de representar a Jéssica. Ninguém merece. Mas há um sofrimento de pai e esse é digno de tutela jurídica", declarou Pedro Godinho.

Numa reação após a sentença, Maria Lino, a avó paterna, lamentou que a pena não fosse ainda mais dura: "Infelizmente não há prisão perpétua porque era isso que eles mereciam. O que fizeram à minha menina não se faz a um animal, muito menos a uma criança de três anos e meio".

Com Lusa

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