São tantos anos a falar disto - do que é consentimento, do que é uma agressão sexual, da forma como o corpo das mulheres é apropriado como propriedade pública - que assistir ao escândalo mundial ante o beijo na boca do presidente da Federação Espanhola de Futebol, Luis Rubiales, à campeã do mundo Jenni Hermoso no palanque da vitória me causa perplexidades contraditórias..A perplexidade raivosa por ter acontecido, por ser possível que um homem se sinta tão à-vontade no seu abuso, tão inconsciente da gravidade do facto, tão naturalizado no ascendente e no domínio, que fez o que fez perante milhões, e a perplexidade comovida perante uma indignação que parece suficientemente solidária e generalizada. Por ver o governo espanhol a condenar sem hesitações o ocorrido, por ver as jogadoras - as camaradas de Jenni e as de outros países - todas unidas, por ver a FIFA a suspender Rubiales, por ler dezenas de artigos de opinião, nacionais e internacionais, sem dúvidas sobre inaceitabilidade do ato, por assistir à solidariedade de jogadores em tuites e faixas e camisolas, por constatar que de repente tanta gente parece saber que impor a uma mulher, e ainda mais numa situação, pela natureza do lugar e de quem impõe, na qual dificilmente poderia reagir com liberdade, aquele contacto físico íntimo é algo de execrável..Mas esta perplexidade boa é também, confesso, uma perplexidade desconfiada. E desconfiada desde logo porque sei como as "ondas" se criam e desenvolvem, e como tanta gente nelas embarca sem retirar nenhuma consequência ou reflexão para a sua realidade..Uma perplexidade desconfiada por saber como foi, é, difícil conseguir que entre sequer nas leis - na espanhola, na portuguesa e nas outras todas - o conceito de consentimento, esse "direito a si" que determina como violência sexual todos os atos que não surjam dele, que não dependam dele, que não se submetam a ele. Saber que de cada vez que se discute cada crime sexual temos de ouvir "mas como é que se prova que não houve consentimento?" ou "também que exagero, agora tem de haver papel passado por notário?" ou ainda "então e a sedução? A espontaneidade? A paixão?".Uma perplexidade desconfiada por viver num país no qual se leem, nas sentenças e acórdãos, argumentações que afastam o caráter criminoso de "contactos de natureza sexual" desde que sejam "rápidos" e apanhem as vítimas "de surpresa". Por exemplo esta, da penalista (e juíza conselheira) Maria do Carmo Silva Dias: "A instantaneidade e surpresa do contacto de natureza sexual afasta por um lado a relevância desse contacto e, por outro, afasta a própria noção de constrangimento." Uma ideia que encontramos também no sempre tão venerado e citado penalista Jorge Figueiredo Dias, o qual escreveu que atos "ocasionais" ou "instantâneos", embora "pesados" ou "impróprios" e "desonestos" não "entravam de forma importante a livre determinação sexual da vítima"..Traduzindo: se o contacto de natureza sexual não der tempo à vítima para reagir, não se poderá falar de constrangimento. Foi precisamente com base nessa ideia que um juiz de Ponte da Barca decidiu, em 2016, que o beijo na boca imposto por um funcionário de uma autarquia a uma estudante de 21 anos não tinha dignidade penal. Dizia ele, o magistrado, que "o ato de beijar uma vez na boca a ofendida (mulher adulta) não preenche o conceito de ato sexual de relevo, mas sim um ato socialmente inaceitável (pois foi feito com violência e sem o consentimento da vítima), mas não subsumível ao crime de coação sexual." Leram bem: "foi feito com violência e sem consentimento", mas não é crime..Para ser crime tinha de ser uma coisa que o juiz achasse grave. Agora um beijo na boca? De uma mulher?.Reparem: esta decisão podia ser só um caso isolado - grave mas pronto. O problema é que é a regra: beijos na boca sem consentimento, apalpões sem consentimento, esfreganços sem consentimento - se em tese tudo isso são crimes segundo o Código Penal (no caso dos apalpões e "esfreganços", desde 2007, através do crime de importunação sexual e contra, à época, a opinião da Associação Sindical de Juízes e de um vice-presidente do Conselho Superior de Magistratura), não são conhecidas, à data desta segunda-feira de agosto de 2023, decisões de tribunais portugueses nas quais tais atos, se infligidos a mulheres adultas, sejam alvo de condenação..Mas por que trago a realidade judiciária portuguesa à colação a propósito deste caso? Bom, porque é muito importante ligar este beijo de Rubiales a Hermoso não apenas à realidade do futebol, e a esse mundo de declarado machismo tóxico que ainda é o desse desporto, mas àquilo que ocorre todos os dias nas ruas, nas escolas, nos locais de trabalho - e, sim, nas esquadras de polícia e nos tribunais, quando e se algum destes acontecimentos lá chega..Porque se uma mulher na situação de Jenni - celebrada campeã do mundo, num palanque à vista de milhões e na presença da rainha do seu país - é submetida a um ato de abuso deste calibre, querem imaginar o que sucede todos os dias a milhões de mulheres e meninas num mundo em que são aculturadas para a submissão e a não reação à violência, para "não ter ouvidos" nem "responder porque é pior", um mundo que as sexualiza e conforma para a vitimação desde crianças enquanto, desde crianças, os meninos são conformados a "ter a iniciativa", a "não se ficarem", e a olhar para as meninas como fracas, menos capazes e suas inferiores?.Avançámos muito - e este clamor contra Rubiales parece confirmá-lo - e avançámos pouco, como demonstra o facto de que aquele beijo pôde suceder, e o beijador pôde depois, perante uma plateia que o aplaudia, apresentar-se como espécie de oferenda sacrificial no altar do metoo (pobre metoo, que não conseguiu sequer que coisas destas não sucedam), vítima das "falsas feministas"..Rubiales não explicou o que fariam, a seu ver, "verdadeiras feministas". Mas, na verdade, com todas as suas explicações desesperadamente contraditórias, com as suas montagens de fotos, os seus comunicados com declarações forjadas (segundo Hermoso), as suas ridículas ameaças de processos contra as jogadoras e a sua pose de toureiro "não me demito", ele não é apenas a imagem de um homem intoxicado pelo poder e pelo seu próprio machismo - é um espelho daquilo que ainda somos, daquilo que ainda permitimos, do quanto o nosso feminismo precisa de ser mais forte, mais duro, mais verdadeiro.