Jeanne Bucher. Não é só a galeria, é história o que chega a Lisboa
"Criou os filhos e, aos 50 anos, separou-se, que era uma coisa muito rara no meio em que ela vivia, foi para Paris. Começou por abrir uma livraria de livros estrangeiros que rapidamente passou a galeria." É assim, pelos anos 20, que o português Rui Freire começa por contar a história de Jeanne Bucher (1872-1946), a galerista cuja história com Portugal começou muito antes de, desde ontem, o número 1 da rua Serpa Pinto, no Chiado, acolher o primeiro espaço da galeria fora de Paris.
Poetas, escritores, pintores, ou escultores paravam na galeria. Ali se mostrou um muito jovem Giacometti, Max Ernst, Kandinsky, Picasso, Mondrian, Man Ray. E foi Jeanne quem reparou numa jovem Maria Helena Vieira da Silva, e em Arpad Szenes, à chegada a Paris. A Galeria Jeanne Bucher Jaeger seria, até ao fim da vida de Vieira da Silva, a sua galeria.
Além dos artistas que expôs, a galeria, aberta em 1925, tornou-se também icónica por ter mantido as portas abertas durante a guerra, resistindo à invasão nazi. Jeanne ajudaria, aliás, muitos artistas durante a guerra. Entre eles Kandinsky ou Max Ernst, de quem foi encontrado uma nota nos arquivos da galeria que dizia: "SOS Jeanne".
Estamos no piso de cima do novo espaço da galeria, que se junta agora ao histórico de Saint-Germain e ao do Marais, aberto em 2008 e dedicado à arte contemporânea. À frente está Rui Freire, atrás, o vidro mostra os quadros que compõem a exposição inaugural: são de dois artistas naïf, André Bauchant (1873-1958) e Louis-Auguste Déchelette (1894-1964). Não é preciso ir muito mais longe para conhecer a mulher que foi Jeanne Bucher, nascida na antiga Alsácia que, casada com o pianista Fritz Blumer, viveu em Estrasburgo antes de partir para Paris. E também ali se vislumbram já os projetos de Rui Freire, a par de Véronique Jaeger, bisneta da fundadora e diretora-geral da galeria.
Bauchant, conta Rui, "é um artista muito importante para a Jeanne Bucher. Foi quem que ela mais mostrou durante os 20 anos em que dirigiu a galeria. Era um grande amigo e foi ele quem guardou, durante esses anos conturbados da ocupação [nazi], muitas das obras da Jeanne Bucher. Ele vivia no campo e, portanto, enterrou no seu jardim as obras. Ela não as podia ter na galeria porque a qualquer momento podiam entrar os nazis, confiscar as obras e criar problemas." E foi nesse período que a galerista mais mostrou os artistas naïf. "É um golpe de génio. Os nazis entrando na galeria não podiam necessariamente criticar aquilo como sendo arte degenerada. A subversão era de tal maneira subtil que não era identificável."
Além de Miguel Branco e Rui Moreira, Rui Freire conta como português outro dos artistas que representam: Michael Biberstein (1948-2013), que viveu grande parte da vida em Portugal e em cujo projeto do Céu para [a igreja de] Santa Isabel, concluído em 2016, a galeria Jeanne Bucher foi uma das peças-chave. Eles, com Vieira da Silva e a nacionalidade portuguesa do próprio Rui Freire, são parte da razão que trouxe a histórica galeria a Lisboa. Além disso, explica o diretor do novo espaço, é uma "cidade onde ainda há muito por fazer, não há muitas galerias internacionais, por exemplo. Também acho que pode ser uma maneira de, eventualmente, outras galerias terem curiosidade e virem instalar-se em Portugal. Hoje em dia as galerias estabelecem-se em Londres, em Bruxelas, na Ásia." Mas, continua, a galeria não tem uma ligação a esses países que a fizesse ir para lá. "Temos com Portugal", remata.
Les Naïfs estará patente até 17 de março na galeria. Rui anuncia já o nome que se segue: o alemão Hanns Schimansky (n. 1949). A vocação da galeria é, adianta, "tendencialmente contemporânea". Mas anualmente procurarão ainda fazer "uma ou duas exposições mais temáticas", e mostrar peças "históricas" que têm naquele acervo, já histórico por si mesmo.