"Jazz não é para ficar em casa"

O <em>jazz </em>de improvisação tem uma vitalidade bastante expressiva em Lisboa e há vários locais da cidade onde pode assistir-se a concertos de forma regular.
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Gabriel Ferrandini sai diretamente do balcão onde esteve a servir bebidas e, de baquetas enfiadas no bolso traseiro direito das calças, abre caminho por entre as pessoas para chegar à pequena clareira formada por umas quantas mesas e cadeiras arredadas, onde tem a bateria à sua espera. São sete da tarde de um dia de meados de fevereiro e meia hora antes já o bar Irreal se encontrava à pinha. Vieram todos ver, de graça, um dos músicos de jazz de improvisação mais conceituados da atualidade, o trompetista norte-americano Peter Evans, que veio viver com a mulher para Lisboa no ano passado. Ferrandini e Evans são amigos, tocaram juntos em diversas ocasiões. Para completar o trio, Evans trouxe o saxofonista Ryan Muncy, um amigo que está de passagem pela cidade.

Situado na Rua do Poço dos Negros ao número 59, o bar Irreal é explorado por Ferrandini e Pedro Sousa, saxo tenor e companheiro de muitas lides musicais de Ferrandini, e é um dos locais mais recentes e também mais interessantes para ouvir ao vivo música experimental e jazz de improvisação - ou de vanguarda, como alguns gostam de chamar-lhe -, que encontra em Lisboa, e também em Coimbra com o papel propulsor do clube e também festival com mesmo nome Jazz ao Centro, uma expressão muito pujante.

TREM AZUL E CLEAN FEED

Há dois anos, a revista Wire fez um artigo de seis páginas sobre a existência de uma nova vanguarda de jazz em Lisboa, em que dava conta da importância da existência da loja de discos de jazz Trem Azul, que abriu em 2004 e fechou em 2014, e do facto de ter cedido espaço de ensaio para músicos como Ferrandini e Sousa, tendo-se tornado um ponto de encontro para jam sessions entre músicos mais experientes e jovens músicos; da importância das editoras de discos Clean Feed, Creative Sources e Shhpuma na cimentação dessa nova energia de música improvisada, cujo historial estava mais ligado ao conceptual e à eletrónica do que ao jazz; ou da importância de festivais como o Jazz em Agosto, programado por Rui Neves para a Fundação Calouste Gulbenkian, ou o já mencionado Jazz ao Centro, responsáveis por trazerem ao país nomes internacionais colocados em contacto não apenas com músicos locais mas também com o público, ajudando a desmistificar as ideias preconcebidas de que a música de improvisação não se pauta por regras ou de que não segue um arco narrativo.

"A Trem Azul foi uma casualidade. O interesse dos músicos em explorar outras sonoridades e em cruzá-las com outros elementos partiu deles mesmos. E não foi só em Portugal", refere Pedro Costa, que foi um dos sócios da loja de discos que existiu na Rua do Alecrim, e é também fundador das editoras Clean Feed e Shhpuma. Costa tem também no currículo a programação de vários festivais nacionais e internacionais de jazz, entre os quais o festival de jazz de Ljubljana, na Eslovénia, pelo qual ganhou o prémio de programação aventureira em 2018, dado pelo European Jazz Network.

A entrevista decorre na esplanada de um restaurante ao lado da S.M.U.P. - Sociedade Musical União Paredense, na Parede, cujo sótão remodelado serve concertos mais intimistas, onde vários músicos de improv jazz já tocaram, incluindo Ferrandini e Sousa. As paredes e o teto daquelas águas-furtadas estão forrados a placas de desperdícios de madeira comprimidos, e uma bateria descansa na parte mais esconsa do espaço vazio, como se aquela amplitude funcionasse como um saco de oxigénio reservado a dar fôlego às noites abafadas dos concertos.

"Os nossos convívios eram muito relacionados com a discussão da música. Tinha que ver com uma dedicação e uma afirmação de um som, de uma linguagem. Foi aí que começámos a usar termos como as texturas, as tessituras. Durante muito tempo, eu e o Gabriel estivemos obcecados com as passagens", contextualiza Pedro Sousa. "Quando começámos, não é que a cena do free jazz não existisse, mas o pessoal estava muito mais disperso e havia muito mais aquele pessoal dos computadores. Havia também aqueles que gravitavam à volta do Ernesto [Rodrigues], a fazer coisas muito mais ligadas ao reducionismo, quase nem tocavam", explica Ferrandini, que já atuou um pouco por toda a Europa, Moscovo, São Petersburgo, é membro das formações RED Trio e Motion Trio e fez residências em locais como a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa, ou o Matadero, em Madrid. "Eu acho que o que nós realmente trouxemos foi mais as possibilidades. De repente, há uma pessoa a tocar bateria - havia poucos bateristas -, o Pedro está a tocar saxo - há mais um saxofonista - e havia um amigo que tocava contrabaixo. E depois foi também o sangue novo", diz.

"Eu comecei a gravar a sério mais ou menos a partir de 2001. Foi a primeira edição da Clean Feed [The Implicate Order at Seixal, 2001]", conta Rodrigo Amado, parceiro de Ferrandini em Motion Trio, juntamente com Miguel Mira, à mesa de uma esplanada no Príncipe Real: "Eu até aí fiz milhares de concertos de improvisação, com o Marco Franco [Mikado Lab], com o Zé Ernesto, com o Nuno Rebelo, com o Rafael Toral, todos. Mas na altura não havia sequer a oportunidade para fixar isso. Nesse sentido, a criação da Clean Feed foi um ponto de viragem, começou a dar oportunidade a um grupo grande de músicos portugueses de editarem. Se nessa altura me perguntasses se alguma vez iria tocar num festival internacional de jazz... isso para mim era um sonho."

"A nova geração de músicos é muito mais desempoeirada, mais fácil de trabalhar, mais fácil de se organizar, tem mais vontade de conhecer outros músicos, de partilhar experiências, de trilhar novos caminhos. Eu acho que isso é uma mudança de paradigma muito grande", considera Pedro Costa. Para isso, contribuiu também, na opinião de Costa, a maior abertura de ensino por parte dos professores de jazz em Portugal no que diz respeito às liberdades e potencialidades próprias da música.

PETER EVANS

Peter Evans entra na sala atolada e encosta-se a uma janela que ocupa de alto a baixo uma parte da parede que dá para a rua, enquanto afina num instante o instrumento. O foco do reclame da loja de conveniência gerida por indianos do outro lado da rua é tão forte e a luz que existe na sala é tão ténue, que coloca o músico em contraluz, como se fosse uma personagem de um filme noir. Na parede perpendicular à da rua e atrás dos músicos, existe uma lareira desativada, encaixada numa parede à qual foi retirado o reboco, dando a ver as camadas de pedra e tijolo que dão à casa um ambiente ainda mais acolhedor.

O concerto começa e ninguém mais consegue entrar no Irreal, o calor no interior contraria a temperatura fria de meados de fevereiro no exterior.

A janela ficou entretanto tapada por transeuntes que passaram e pararam para ficar a ouvir a música. Muncy começa por emitir alguns sopros e a intercalá-los com notas suaves, até lhes imprimir velocidade e carga dramática, altura em que entram Evans e depois Ferrandini. A música ganha uma dimensão literária, catártica, a do lobo das estepes de Hermann Hesse transmutado em alcateia, indivisível, a correr desenfreada pela floresta para expurgar a necessidade de encontrar um sentido para a vida pelo qual sempre foi aguilhoada. Um grito pelo não racional, pelo não mental, um grito de liberdade. Do lado de dentro do balcão, Pedro Sousa, de braços cruzados, tamborila com os dedos da mão esquerda na pele do braço direito, a acompanhar as notas que os colegas tocam. A dada altura, Ferrandini começa a tocar diretamente com os dedos no rebordo de um dos tambores. À parte a música que está a ser tocada, o silêncio na casa é total.

NILSSEN-LOVE

O concerto de Evans, Ferrandini e Muncy acaba e no bar não têm mãos a medir. Em passo de marcha de um lado para o outro, Pedro Sousa não para, entre solicitações de bebidas e diligências para tratar do jantar dos músicos que vão tocar no concerto seguinte, às 22.00. Com Rafael Toral nas eletrónicas, Nuno Torres no saxo alto e Nuno Morão na bateria, uma espectadora entusiasta do concerto viria a gritar várias vezes "space oddity!".

"Além de atuar aqui e ali, espero estabelecer um tipo de workshop que envolva pessoas de diferentes cenas - jazz, clássica, experimental, etc. -, que possam reunir-se, talvez, mensalmente e trabalhar músicas com alguma orientação minha, para podermos tocá-las no próprio dia em concerto", diz Peter Evans, via e-mail, acerca do seu envolvimento na movida do improv jazz lisboeta. "Eu tenho muita experiência em diferentes escolas e, depois de ver como as coisas são para a maioria dos estudantes e jovens músicos em formação, quero apresentar algo que seja educacional mas que ofereça à prática da criatividade uma abordagem mais divertida e ligada à vida real."

Na noite seguinte, há novo concerto com um nome sonante no cartaz, o do baterista norueguês Paal Nilssen-Love, também ele um dos músicos do jazz de improvisação mais conceituados do momento. É acompanhado por Pedro Sousa no saxofone e Hernâni Faustino no contrabaixo. Pedro Sousa socorre-se também do recato da janela para colocar a boquilha no instrumento e concentrar-se. Flak, músico dos Rádio Macau com uma história ligada à improvisação, entra no Irreal. Logo depois, entram também os Montanhas Azuis, trio formado por Bruno Pernadas, Norberto Lobo e Marco Franco, que tinham estado a dar um concerto na Culturgest.

Nilssen-Love vendeu o apartamento que tinha em Oslo e comprou um em Lisboa, os pais vivem em Tavira. "Nunca estou em casa, de qualquer maneira, estou sempre em digressão, sempre", refere o músico, a simpatia e disponibilidade para dar uma entrevista a seguir ao concerto e antes de ir apanhar um avião a fazerem jus ao nome. Vai apanhar um voo primeiro para Oslo e depois para o Japão, onde fará uma digressão de seis datas. Antes, esteve em Cracóvia e Amesterdão. No ano passado, deu 170 concertos. A viver em Lisboa há três anos, Nilssen-Love diz ter ficado surpreendido com a quantidade de locais que existem para tocar.

Hoje é possível ouvir improv jazz de forma recorrente em espaços como as D.A.M.A.S, a Crew Hassan, a Fábrica do Braço de Prata, o Lounge, a Galeria Zé dos Bois, a S.M.U.P. ou a Zaratan. "Este vai desaparecer, infelizmente." Sousa e Ferrandini têm indicações indefinidas quanto às datas em que terão de encerrar o Irreal. Em princípio, será em finais de abril. "Fiquei também surpreendido com a quantidade de músicos, que não conhecia nem tinha ouvido falar, que são bons", continua o músico norueguês. "Nunca tinha tocado com o Hernâni nem o tinha ouvido tocar assim tantas vezes. E foi muito bom. Diverti-me muito a tocar com ele", diz, acrescentando que conhece Ferrandini há uns 12 anos. "É bom ver que existe uma movida tão boa de locais, de músicos e também o facto de os músicos aqui organizarem os seus próprios concertos, como o Pedro e o Gabriel fazem."

O PIONEIRO

O saxofonista inglês Evan Parker, hoje com 74 anos, foi o pioneiro da música de jazz de improvisação. "O Parker começou a fazer isto 20 anos depois do bebop. Começou nos anos 60 e já estamos em 2019. Essa música já se esgotou um bocadinho, já não é isso que os músicos da nova geração estão a fazer", defende Pedro Costa. "Estou a lembrar-me por exemplo dos The Selva, do Ricardo Jacinto com o Nuno Morão e o Gonçalo Almeida, que é música improvisada do zero, tocada numa linguagem que é deles. Isso é uma coisa nova. Não se socorre de solos."

Gabriel Ferrandini tocou com Evan Parker em maio do ano passado, no Teatro Viriato, em Viseu, e na Culturgest, em Lisboa. "Conhecemo-lo num workshop que nos deu há uns anos em Coimbra", refere Pedro Sousa. "Eram dias e dias de conversas intermináveis. Ele perguntava 'meus senhores, o que é o jazz?' Todos os dias nos mantínhamos à volta daquilo, até que dissemos 'jazz é não ficar em casa'. Ao que ele respondeu: 'Acho que poderia aceitar essa resposta'", diz Ferrandini. Foi também Evan Parker quem lhes deu uma das dicas mais preciosas relativamente à música: "Vocês têm de fazer os outros músicos soar melhor."

Rodrigo Amado, que também já tocou com Evan Parker, salienta a importância de tocar com músicos mais experientes. "São desafios de tal maneira grandes que se chega ao fim de um concerto que durou uma hora e já se é uma outra pessoa. Estás a tocar de outra maneira. O teu corpo parece que se transforma. É extraordinário", conta. "Uma coisa que falo sempre aos músicos mais novos é a importância de tocarmos sempre com músicos que tocam melhor do que nós."

"Temos gavetas de certezas", admite Ferrandini. "Também não podes achar que vais trazer músicas novas todos os dias." Diz haver coisas que têm de ser refinadas e repetidas. "É completamente neurótico. É como se nós quiséssemos, num segundo, desfazer... Eu e o Pedro mandamos uma entrada e aquilo está perfeito. "OK, sabemos fazer isto, isto soa muito bem." Vou pregar uma rasteira ao Pedro para desfazermos já isto - to keep the juice, abrir outra porta. Estás a desconstruir uma cena para voltar a construir. É isso que acho que é a lupa desta música: como é que podes estar sempre a colocar um abismo à frente do teu colega, mas, ao mesmo tempo, ele saber que tu já lá estás para ajudá-lo. Quando fazes este loop e consegues ter um arco maior, feito destes pequenos arcos, tens a tua narrativa. Tocar em ponto pequeno e em ponto grande ao mesmo tempo." E acrescenta: "Depois, em cima disto tudo, tens a vida real. É quase como se isto fosse uma utopia. Imagina que o Pedro até estava muito bem nessa noite e eu não estava "lá". As bandas são mesmo um milagre."

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