Jardim Botânico da Ajuda: o portal para uma viagem no tempo e pelo mundo

Este museu vivo foi o primeiro do género em Portugal, criado no século XVIII pelo Marquês de Pombal, e é lugar de conservação de cerca de 1100 espécies de plantas. O DN foi conhecer o trabalho liderado pela arquiteta paisagista Ana Luísa Soares.
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São 14h12, o sol vai alto e forte quando somos recebidos por um dos pavões que habita o Jardim Botânico da Ajuda e que guarda, graciosamente, a entrada pela Calçada da Ajuda. Pela frente temos quatro hectares de um museu vivo onde se preservam, estudam e colecionam hoje cerca de 1100 espécies da flora, um exercício de defesa da biodiversidade e de conservação. "Os jardins botânicos têm um papel muito importante na promoção da biodiversidade. Temos as coleções botânicas e também as componentes de investigação, horticultura e educação", explica Ana Raquel Cunha, arquiteta paisagista e aluna de doutoramento do Instituto Superior de Agronomia (ISA).

O fascínio pelo estudo das plantas, dos seus processos de desenvolvimento e a forma como pintam um espaço são características que não só estão associadas ao conceito de jardim botânico, mas que fazem Ana Raquel Cunha querer ser uma das guardiãs deste património. Outra das razões, sublinha, é "ajudar a compreender e a encontrar respostas para as alterações climáticas", protegendo espécies ameaçadas pela cegueira humana. "No seu dia-a-dia, as pessoas têm uma certa cegueira em relação às plantas e isso leva a que não tenham noção de que é necessário protegê-las", lamenta. A ideia de plant-blindness é mais evidente quando os dados apontam para que 40% das espécies de plantas conhecidas estejam em ameaça, mais do que acontece nos animais.

Esse trabalho de conservação é a paixão de Vera Ferreira, curadora da coleção do Jardim Botânico da Ajuda e responsável por uma das suas áreas menos conhecidas: o banco de sementes. "Todas as sementes que recolhemos no nosso jardim e que podemos trocar com outros jardins botânicos estão preservadas neste espaço", diz, enquanto aponta para uma sala frigorífica preenchida de tubos de ensaio e pequenos sacos de papel. O entusiasmo de Vera é interrompido pelo alarme que indica que a porta tem de ser fechada para preservar os cinco graus de temperatura e o nível de humidade, fixado em 15%. "Em sacos de papel estão as sementes que temos para substituir as plantas da coleção botânica, mas também para trocar com outras instituições".

Mas o trabalho desta especialista não termina aqui. Uma das suas funções é monitorizar duas espécies em declínio - armeria rouyana e thymus capitellatus, ambas endémicas em Portugal - e perceber o que se passa com o seu processo reprodutivo. "Tentamos desenvolver protocolos para as plantas da nossa flora, com informação de quanto tempo a semente pode estar armazenada ou qual a temperatura ótima para germinar", exemplifica.

Neste que é o primeiro jardim botânico do país, criado no século XVIII a pedido do Marquês de Pombal e desenhado pelo italiano Domingos Vandelli, há cinco áreas de passeio - as estufas, a zona de mata que representa a vegetação lisboeta, o jardim dos aromas, o terraço inferior e o terraço superior. É aqui, com vista desafogada sobre Belém e o rio Tejo, que estão as 1100 espécies que compõem a coleção botânica da Ajuda e que são resultado do empenho de Cristina Castel-Branco para restaurar, na década de 90, a magnificência que, séculos antes, este jardim terá tido. "No tempo de Vandelli haveria cinco mil espécies, que mais tarde passaram a 1300 com Félix de Avelar Brotero [nomeado diretor do jardim em 1811]", contextualiza a atual diretora, Ana Luísa Soares. Ainda como jovem estudante de arquitetura paisagista participou, em 1993, nos trabalhos de restauro que permitiram passar de 90 para 1100 espécies.

"Chegámos aqui quase sem espólio, era muito frustrante. Ao fazer a investigação histórica encontrámos uma planta antiga do Vandelli e essa foi a inspiração para construir o que hoje existe", conta a também professora do Instituto Superior de Agronomia, que gere o espaço. Fruto de intensa pesquisa e forte investimento público, com fundos comunitários e nacionais de 152 mil contos (cerca de 1,4 milhões de euros quando ajustado à inflação), é agora possível viajar pelo mundo sem sair da Ajuda.

De um extremo ao outro do terraço superior são cerca de 200 metros que possibilitam um passeio, através da coleção botânica, da América do Sul à Nova Zelândia, passando pelo Japão ou África, entre muitas outras regiões. "Costumo dizer que podemos dar a volta ao mundo através das plantas que aqui estão", aponta Ana Luísa Soares.

A escadaria que dá acesso ao tabuleiro inferior leva-nos até a uma zona "mais romântica", com quatro quilómetros de sebes pelos quais príncipes e damas terão passeado ao longo dos séculos, e que nos faz esquecer que estamos numa capital - uma imagem quebrada apenas pelo ocasional som dos aviões. A tranquilidade, aliada à beleza da paisagem natural organizada pelo Homem, é um dos fatores que atrai visitantes ao Jardim Botânico da Ajuda, ainda que não tantos quanto Ana Luísa Soares gostaria. Em 2022, foram cerca de 25 mil as pessoas que por ali passaram. "Temos o desafio da localização geográfica, estamos afastados da rota mais turística junto ao Palácio de Belém", justifica. Embora esteja localizado nas traseiras do Palácio Nacional da Ajuda, junto ao novo Museu do Tesouro Real, muitos visitantes não "sabem da existência do jardim".

Neste museu histórico e botânico, há, no entanto, muito para fazer ao longo do ano. Além das visitas guiadas pelas estórias e as plantas, a equipa organiza workshops temáticos regulares a que se juntam cursos de jardinagem da Associação dos Amigos do Jardim Botânico da Ajuda, peças de teatro infantil criadas pela Animarte ou visitas encenadas com a presença da rainha D. Maria Pia. A agenda cultural conta ainda com as festas de boas-vindas da Primavera e do Outono, assim como a já tradicional Charanga a Cavalo da Guarda Nacional Republicana, um espetáculo que junta música e equitação.

Motivos não faltam para conhecer aquele que é, ainda, um dos segredos turísticos mais bem guardados da cidade onde existem outros dois congéneres - o Jardim Botânico de Lisboa, no Príncipe Real, e o Jardim Tropical, junto ao Palácio de Belém. "Os três pertencem à Universidade de Lisboa, é um património muito rico", destaca Ana Luísa Soares.

HISTÓRIA: Criado em 1768, o espaço que albergou o Real Museu de História Natural nasceu na transformação da cidade vivida no pós-terramoto, sofreu com as invasões francesas e refloresceu no final do século XX.

COLEÇÃO: São cerca de 1100 as espécies de plantas de 150 famílias que é possível conhecer nos quatro hectares do jardim. Entre elas, 370 árvores entre as quais se destacam os jacarandás, a imponente figueira-estranguladora ou a schotia afra com mais de 180 anos e 20 metros de diâmetro.

ATIVIDADES: Ao longo do ano, há iniciativas de teatro infantil, workshops temáticos e cursos de jardinagem, mas também as já tradicionais festas da Primavera e do Outono. A Charanga a Cavalo da GNR é outro dos eventos habituais.

PREÇO: As entradas para o Jardim Botânico da Ajuda são gratuitas para crianças até aos 6 anos e moradores da freguesia. Os bilhetes variam entre 1€ para estudantes, seniores ou visitantes do Palácio Nacional da Ajuda, e 2€.

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