Janis Joplin: O sonho hippie dos Anos 60

Mais de 50 anos após a sua morte, e quando faria 80 se estivesse viva, cantautora e instrumentista continua a ser mundialmente reconhecida como um ícone da contracultura.
Publicado a
Atualizado a

Era uma vez uma miúda imparável, irrequieta e inteligente...

Podia começar assim a história da incrível Janis Joplin, nascida há 80 anos (19 janeiro), cujo espetacular sucesso como cantora de blues e rock prometia um final feliz. Mas os astros trocaram-lhe as voltas, dando-lhe um fim trágico e prematuro no auge da fama e do sucesso.

Mais de cinquenta anos após a sua morte, Janis Joplin continua a ser mundialmente reconhecida como um ícone da contracultura. Mas muitos identificam apenas a imagem hippie que lhe sobreviveu - com a ajuda da amiga estilista, Linda Gravenites (1939-2002), que criava a sua roupa, e do seu Porsche personalizado com pinturas psicadélicas - e a lenda da decadente consumidora de álcool e drogas, que sucumbiu aos excessos.

Quem era, afinal, Janis Joplin, a arrebatadora intérprete que deitava por terra o estereótipo das vozes femininas que a indústria musical comercializava?

De acordo com a mais recente biografia de Joplin, Janis, her Life and Music (Holly George-Warren, 2019), Janis era uma criança realmente viva - nas palavras dos pais, também teimosa e desobediente - que ao mesmo tempo revelava um enorme talento para as artes plásticas, pelo que se pensava que poderia vir a seguir a via artística. Não se vislumbrava sequer a possibilidade de uma carreira musical, apesar de ter tido uma iniciação ao piano aos 4 anos (numa tentativa da mãe para ajudar a controlar a sua hiperatividade) e de cantar todas as noites para se embalar, antes de adormecer.

Na escola, o ambiente não a interessava. Tornando-se numa adolescente cada vez mais irreverente, rebelde e insubmissa, Janis tinha uma perceção do mundo bastante mais ampla do que a maioria dos habitantes da sua provinciana e conservadora cidade natal, Port Arthur, Texas. Num tempo e lugar de absoluta discriminação racial, a jovem contestava a segregação vigente, ficando ela própria marginalizada por isso, referindo mais tarde que não se sentia integrada por ser uma rapariga que lia, pintava, pensava e não odiava negros.

Travou amizade com uns rapazes um pouco mais velhos, considerados rebeldes, que acabaram por acolhê-la no grupo como se fosse um deles. Foi neste contexto que tomou contacto com as vozes dos grandes cantores de blues clássicos, em discos de 78 rotações que ouviam juntos em casa de um deles, ficando desde então fascinada por Bessie Smith (1894-1937), uma das principais fontes de inspiração para a sua carreira. Com surpresa, segundo a própria, só aos 17 anos percebeu que tinha boa voz para cantar quando, numa festa, resolveu imitar a sua cantora preferida e deixou todos de boca aberta com o enorme talento que revelava.

Durante o tempo na faculdade Janis cantava quando podia, em bares ou cafés, essencialmente música folk e blues, quer acompanhando-se à guitarra, quer com algum instrumentista familiarizado com o mesmo repertório. Mas aos 20 anos, com a cabeça a fervilhar de sonhos e aspirações, atraída pelo estilo de vida em S. Francisco, abandona tudo e vai com um amigo à boleia para essa cidade, num périplo de quase três mil quilómetros.

Por esta altura S. Francisco era um ponto de confluência dos jovens que, fascinados pela cena Beat, procuravam uma vida sem preconceitos nem obrigações, desprezavam a política e a autoridade, assumiam como legítimos direitos a liberdade sexual e o consumo de substâncias estimulantes e alucinogénias.

Era um tempo louco, vivido tão intensamente - experimentando tudo o que havia para experimentar em termos musicais, de amizades, relações pessoais, sexuais e amorosas, drogas diversas, estilo de vida completamente não-convencional, sobretudo para uma mulher - que Janis acabou por ficar refém da sua própria liberdade, deixando-se degradar pelo descontrolo com drogas e álcool, piorando a qualidade das suas atuações e chegando a um ponto de toxicodependência em que já não tinha como subsistir. Os amigos quotizaram-se, compraram-lhe uma passagem e meteram-na num autocarro para casa, no Texas.

De volta ao lar, Janis foi bem acolhida pela família, recuperou fisicamente, levava uma vida mais tranquila e convencional, chegando a pensar seriamente em deixar a música, consciente que estava dos perigos daquele meio e continuando na dúvida se conseguiria ou não singrar como cantora. Inscreveu-se na universidade para um novo curso, desta vez na área social. Tornou-se bastante caseira e passado algum tempo cantava pontualmente em pequenos espaços, fazendo os possíveis por se afastar de locais onde houvesse consumo de drogas, para evitar uma recaída.

Entretanto tinha planos de casamento com um homem que tinha conhecido em S. Francisco e se encontrava em Nova Iorque, mantendo com ele uma relação epistolar que culminou com a visita dele ao Texas para pedir a sua mão ao pai, formalmente. Janis, carente, apaixonada e ingénua, com um grande desejo de ter um ombro em que se apoiasse e de constituir família, demorou algum tempo a perceber que o noivo era um vigarista que a enganava, um oportunista que vivia com outra, que entretanto estava grávida, adiando o casamento com sucessivas histórias inventadas.

A certa altura chegou de S. Francisco um amigo com a incumbência de a convidar a ir prestar provas como vocalista numa banda que aí tentava afirmar-se. Janis não conseguiu resistir ao sonho hippie, com que se identificava por completo, avisou os pais que estaria fora no fim de semana e partiu, desta vez de carro, de volta para a Califórnia.

Com um enorme entusiasmo e esperança de conseguir finalmente singrar, prestou provas para os Big Brother & The Holding Company, sendo aceite como o quinto elemento da banda. Com eles selaria uma forte amizade e chegaria a viver em comunidade, cuja cumplicidade musical acabaria por determinar o seu sucesso bombástico no ano seguinte, após um intenso trabalho de ensaios, mais de uma centena e meia de espetáculos em digressões e críticas favoráveis na imprensa.

Foi no Festival Pop de Monterey (Califórnia), no verão de 1967, que os Big Brother - com a performance explosiva de Janis Joplin, entre outras revelações como Jimy Hendrix (1942-1970) e Otis Reding (1941-1967) - alcançaram a notoriedade e aclamação generalizada, obtendo finalmente o reconhecimento que precisavam para chegar à poderosa indústria discográfica e, com isso, aspirar a uma carreira internacional.

Mas o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Apesar de se abrirem novas portas, nomeadamente com concertos mais bem-pagos e em recintos significativamente mais importantes, de lançarem o primeiro álbum nesse ano e gravarem o segundo e bem-sucedido Cheap Thrills no ano seguinte, a banda passou a ser criticada por não estar ao nível de Janis Joplin, agora considerada uma espetacular vocalista com os seus acompanhantes e não um dos elementos do grupo, como até então. Os elogios à cantora prendiam-se com a sua incrível capacidade vocal e emocional, a forma como improvisava ou como arrebatava o público com a sua cativante imagem.

Em pouco tempo o ambiente deteriorou-se no seio do grupo e, no final de 1968, a artista deixava os seus irmãos musicais para começar uma nova etapa com outro coletivo, a Kozmic Blues Band, que incluía um trio de sopros. Com eles fez uma digressão na Europa, em 1969, atuou no memorável Festival de Woodstock e gravou o seu primeiro álbum a solo, I Got Dem Ol' Kozmic Blues Again Mama!, lançado em setembro desse ano. Mas os críticos viam em Janis Joplin uma estrela muito acima dos seus instrumentistas, sendo aconselhada uma vez mais a procurar melhores músicos, o que de facto aconteceu em 1970.

Este último ano da cantora, vivido intensamente até ao último dia, começou com umas férias no Rio de Janeiro, tentando abrandar o ritmo de vida e os consumos que estavam a deixar marcas na voz. No regresso sobrepôs-se a árdua tarefa de criar a Full Tilt Boogie Band e ensaiar o repertório com que em seguida fariam cerca de três dezenas de concertos nos Estados Unidos e Canadá, incluindo o muito original Festival Expresso. Este ficou na história como mais uma das muitas singularidades da época, consistindo numa digressão de vários artistas e bandas - além de Janis Joplin, também The Band, os Greatful Dead e muitos outros - que se deslocavam de cidade em cidade a bordo de um comboio fretado e adaptado para o efeito, convivendo intensamente uns com os outros numa das carruagens-salão.

Depois do verão Janis e a banda entraram em estúdio para o que seria o seu último e mais célebre álbum, Pearl (lançado três meses após a sua morte), onde figuram canções inesquecíveis como Me and Bobby McGee (o seu único single Nº1) e Mercedes Benz ou a impactante Move Over, ambas da sua autoria.

Mas Janis era adepta da festa non-stop e nem a morte a deteve. No seu testamento deixou dois mil e quinhentos dólares para que se organizasse uma reunião fúnebre/festiva dos seus amigos, como despedida, a qual teve lugar poucas semanas depois, num espaço onde ela própria tinha atuado. Dizem que houve festa rija, muita bebedeira e música dos Greatful Dead, entre outros amigos, sendo indicado nos convites que as bebidas eram por conta da falecida: !Drinks are on Pearl!.

Entre os inúmeros faits divers em torno desta figura pode referir-se a sua relação com os mal-afamados Hells Angels, um grupo de motoqueiros broncos, geralmente violentos e arruaceiros - razões suficientes para atrair Janis -, cuja amizade fez com que várias vezes ela tocasse gratuitamente em festas por eles organizadas, e que eles, em bloco, estivessem sempre prontos para a defender.

É também conhecida a predileção de Janis por uma bebida licorosa à base de whisky, cuja garrafa se encontra visível em inúmeras fotos da artista. Verdade ou mito, corria que ela tinha recebido um casaco de peles como reconhecimento do fabricante, pela publicidade.

E como a garrafa era realmente um atributo frequentemente na mão de Janis Joplin, é também famoso o episódio em que ela partiu uma na cabeça de Jim Morrison (1943-1971), dos Doors, numa festa em que ambos se encontravam, depois de ele ter sido insultuoso para com ela, segundo o relato de uma testemunha presencial, o músico David Crosby (n. 1941).1

Com o passar do tempo, por incrível que pareça, a fama de Janis Joplin continua intacta, se não mesmo maior. Para além da edição e reedição da toda a sua música, e de terem sido já publicadas quinze biografias (entre 1971 e 2019),2 tem havido diversas homenagens póstumas referentes à sua curta, mas intensa carreira musical. Vários músicos que com ela se cruzaram (no palco ou na cama) dedicaram-lhe sentidas canções, após a sua morte, entre as quais Epitaph (Kris Kristofferson, 1971), In the Quiet Morning (Mimi Fariña, 1971, gravada pela sua irmã Joan Baez, 1972) e Chelsea Hotel #2 (Leonard Cohen, 1974).

Por ocasião do 60.º aniversário do seu nascimento subiu ao palco o musical Love, Janis (1994), a partir do livro homónimo (1992) da autoria de Laura Joplin, irmã da cantora, com base nas cartas que Janis escrevia para a família. Vinte anos depois surge um novo musical, A Night With Janis Joplin (2013), um muito bem-sucedido espetáculo graças ao enorme talento de Mary Bridget Davies (n. 1978), que lhe granjeou um Prémio Tony. E em breve surgiria o filme que faltava, Janis: Little Girl Blue (2016), de Amy Berg, um documentário que conta com testemunhos de muitos músicos e amigos da artista, para além da imprescindível participação dos irmãos Joplin, Laura (n. 1949) e Michael (n. 1953), que ao longo dos anos têm contribuído incansavelmente para manter a chama acesa.

Janis Joplin deixou uma marca indelével na história da música popular do século XX e da contracultura, mudando por completo o paradigma do papel da mulher na sociedade. Foi notável a forma como se afirmou enquanto mulher branca a cantar blues naquela época e como criou um modelo interpretativo para muitos cantores de rock que se lhe seguiram. E, tal como afirmou em diversas entrevistas, a melhor coisa que lhe aconteceu na vida foi poder estar em cima de um palco a cantar.

1 - Long Time Gone, 1988. p. 125.
2 - Biografias elencadas na excelente página (não oficial) de Janis Joplin, https://www.janisjoplin.net

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt