Jair Bolsonaro e as "quatro linhas" da Constituição
O ex-Presidente do Brasil é conhecido - dentro e fora do país - pelos absurdos que diz. São tantas as palermices e atrocidades que é difícil ficar a par e analisar tudo com a devida atenção. É assim que situações graves passam despercebidas por entre o rol de alarvidades.
É o caso da expressão "dentro das quatro linhas da Constituição", uma metáfora relacionada com as quatro linhas de um jogo de futebol, que usou ostensivamente durante os quatro anos do mandato presidencial e que continua a usar depois de ter perdido as eleições, funcionando como uma espécie de código que, ao mesmo tempo, anima o seu séquito de fanáticos e ilude a sociedade e as autoridades de que não constitui um perigo para a democracia.
Desde quando argumentar que jogou nas "quatro linhas" da Constituição constitui em alguma vantagem ou tem algum valor? Agir de acordo com os preceitos constitucionais é o mínimo. Respeitar a Constituição é o mínimo dos mínimos que se espera numa nação democrática, e especialmente da autoridade máxima do país. Absurdo seria cogitar agir em sentido contrário. No entanto, foi e continua a ser isso que a massa bolsonarista espera que aconteça.
O que aconteceu a 8 de janeiro de 2023 no Brasil foi ainda mais grave do que a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021. Nos Estados Unidos, invadiram o Legislativo, no Brasil, invadiram as sedes dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. E não parou por aí. Seguiram-se atentados a refinarias de petróleo, centrais elétricas, estradas. Os atacantes ostentavam orgulhosamente símbolos bolsonaristas, enquanto gritavam pelo seu mito; muitos foram candidatos ou eleitos com o apoio do ex-presidente. À medida que vão sendo descobertos os nomes dos organizadores, são conhecidas também as suas ligações a Jair Bolsonaro.
O que fez Jair Bolsonaro pouco mais de 48 horas depois do maior atentado às instituições democráticas do Brasil? Uma publicação no Facebook, rede social onde é seguido por mais de 15 milhões de pessoas. O ex-presidente publicou um vídeo, com um título em letras garrafais que dizia "Lula não foi eleito pelo povo. Ele foi escolhido e eleito pelo STF [Supremo Tribunal Federal] e TSE [Tribunal Superior Eleitoral]". Horas
depois começou a circular uma convocatória para uma "megamanifestação nacional pela retomada do poder" com ações previstas para todas as capitais do país.
Não é à toa que até hoje não cumprimentou o candidato vencedor e saiu do Brasil para não participar na cerimónia de posse do seu sucessor. Nada do que Bolsonaro faz é por acaso. Ele sabe que as suas palavras e ações incitam ao caos e age com esse objetivo.
Os episódios mais recentes levaram ao despertar de alguns bolsonaristas, mas é assustador o número dos que continuam a chocar o ovo da serpente, seja por ação ou inação.
A verdade é que o Brasil começou a perder o rumo há muito e Jair Bolsonaro faz parte deste declínio. O país fez ouvidos moucos, absurdo após absurdo, e, com isso, Jair Bolsonaro prosseguiu aumentando o tom ao longo dos seus cerca de 30 anos de vida política.
Nos anos da década de 1990, durante um programa de televisão, disse que o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, deveria ser fuzilado. Em 2016, na sessão de votação do "impeachment" da Presidente Dilma, transmitida em direto para todo o Brasil, dedicou o seu voto a Brilhante Ustra, que torturou não apenas Dilma Rousseff, mas inúmeros outros brasileiros durante a ditadura militar. Também sobre Dilma, disse noutra ocasião: "Espero que o mandato dela acabe hoje, enfartada ou com câncer, ou de qualquer maneira."
Jair Bolsonaro sempre disse as maiores atrocidades abertamente, diante de microfones e plateias enormes. Durante a campanha eleitoral de 2018 encerrou um discurso segurando um fuzil e a agitar a plateia com o grito: "Vamos fuzilar a petralhada!" (forma pejorativa que usa para se referir aos militantes do Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula da Silva, atual Presidente).
Nem as crianças foram poupadas dos seus absurdos. Foi orgulhosamente fotografado inúmeras vezes com crianças a fazer gestos de armas com a mão, não só como candidato em 2018 e em 2021, mas ao longo dos quatro anos do mandato presidencial.
Durante a pandemia de covid-19, atrasou a aquisição das vacinas e espalhou todo o tipo de "fake news". Entre elas, que quem se vacinasse poderia ficar infetado com SIDA. Imitou pessoas com falta de ar.
Confrontado com informações sobre mortes, respondeu que não era coveiro. O Brasil é um dos países com maior número de mortos por covid-19. Foram cerca de 700 mil vidas perdidas. Estima-se que existam 40 mil crianças e adolescentes órfãos em decorrência da pandemia.
Vamos falar então de Lula e outros candidatos do PT. Lula perdeu as eleições em 1989, 1994 e 1998. Nas três ocasiões aceitou o resultado, recolheu-se para lamber as feridas e apresentou-se novamente a eleições (que venceu duas vezes, governando o Brasil de 2003 a 2006, e de 2007 a 2011). Dilma sofreu um impeachment no seu segundo mandato e agiu com serenidade. Fernando Haddad, candidato nas eleições de 2018, minutos depois de divulgados os resultados reconheceu a derrota e cumprimentou Jair Bolsonaro pela vitória.
Lula foi preso, Dilma perdeu o mandato e Haddad foi derrotado nas eleições. O que fizeram os seus eleitores? O mesmo que os seus líderes, ou seja, acataram pacífica e democraticamente as decisões e os resultados.
Essa é uma das muitas razões que torna absurda a narrativa de que Lula e Bolsonaro são dois lados da mesma moeda.
Lula não é a solução dos problemas do Brasil, ninguém é. Simplesmente porque a solução não é rápida e nem depende de uma só pessoa. Será preciso tempo e esforço coletivo. No entanto, é inegável que desde 1 de janeiro de 2023 a maioria dos brasileiros (e também o mundo) respirou de alívio, livre de um peso que só atrasou o país desde 2018.
E que ninguém subestime a vitória de Lula. É o primeiro Presidente do Brasil a vencer três eleições democráticas. O número de votos também é um triunfo. Com mais de 60 milhões de votos, obteve um resultado histórico que se traduz na maior votação desde a redemocratização do país.
Lula não vai fazer milagres em quatro anos, mas vai ajudar o Brasil a virar esta triste página da sua história. Está mais do que na hora de o povo brasileiro ser feliz de novo e o país voltar a ser mundialmente referenciado por boas notícias.
*Jornalista luso-brasileira, diretora do Notícias de Famalicão e mestranda em Comunicação Acessível