Jair Bolsonaro assume derrota 45 horas depois sem felicitar Lula
Jair Bolsonaro demorou quase 45 horas para cumprir metade do protocolo que os chefes de Estado no mundo democrático costumam demorar minutos a fazer depois de uma eleição perdida: assumir a derrota. A outra metade, cumprimentar o eleito, Lula da Silva, o presidente cessante do Brasil não conseguiu.
Em rápido discurso, lado a lado com o seu ministério no Palácio do Planalto, Bolsonaro repetiu um dos slogans de campanha - "Deus, Pátria, Família e Liberdade" - inspirado no integralismo brasileiro dos Anos 30, uma versão tropicalizada do fascismo que evoca máximas dos ditadores Benito Mussolini ou António Salazar, queixou-se de ter lutado contra o sistema, apesar de ter usado a máquina estatal para investir cerca de 13 milhões de euros em auxílios extra a eleitores durante a campanha, e recusou acusações de ser antidemocrático.
"Sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Nunca falei em controlar ou censurar os media e as redes sociais. Enquanto Presidente da República e cidadão, continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição", afirmou.
Bolsonaro, do PL, sugeriu ainda que o seu futuro passa por continuar na política, valendo-se do capital político de ter conquistado quase metade dos votos na noite de domingo - Lula somou 50,9% e o candidato de extrema-direita 49,1%.
Foi a primeira derrota na carreira de Bolsonaro: em 1988, elegeu-se vereador do Rio de Janeiro, de 1994 a 2014 foi deputado federal, e, em 2018, venceu a eleição para a Presidência da República a Fernando Haddad, candidato pelo PT, dada a impossibilidade de Lula concorrer, detido na sequência de decisão do então juiz e futuro ministro bolsonarista Sergio Moro.
Segundo o jornal Metrópoles, Bolsonaro já combinou com o presidente do PL ocupar um cargo na estrutura partidária, com salário, direito a casa e escritório pagos, assim como a assessoria jurídica.
Com a derrota nas eleições do domingo, Bolsonaro perde também o foro privilegiado dos políticos em exercício de funções, ou seja, passa a responder a processos na Justiça comum. E há hoje quatro inquéritos em que Bolsonaro é investigado em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF): sobre divulgação de notícias falsas acerca da vacina contra covid-19, sobre fuga de informação de dados sigilosos, sobre ataque ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral), sobre ataques e notícias falsas contra juízes do STF e sobre interferência na Polícia Federal.
Na Comissão parlamentar de Inquérito da covid foi ainda acusado de epidemia com resultado morte (por suspeita de propagar o vírus), de prática de charlatanismo (devido ao incentivo de uso de medicamentos sem eficácia), de ter cometido infração de medida sanitária preventiva (por realizar aglomerações e não usar máscara), de ter feito uso irregular de verbas públicas (por uso de recursos públicos na compra de medicamentos ineficazes), de ter cometido prevaricação (por não ter mandado investigar denúncias de corrupção na compra de vacinas), de incitação ao crime (por incentivar aglomeração e o não-uso de máscara) e outra sobre falsificação de documento particular (por ter apresentado uma falsificação como sendo um documento oficial do Tribunal de Contas da União que provaria haver um excesso na contabilização de mortes por covid-19).
Noutro ponto do discurso, o presidente cessante recomendou aos camionistas que bloqueiam estradas pelo Brasil como reação à derrota nas urnas que encerrassem o protesto. "Os atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedade, destruição de património e cerceamento do direito de ir e vir."
A declaração surge horas depois de associações que representam polícias rodoviários afirmarem que o "silêncio" de Bolsonaro sobre a derrota nas eleições dificultava "a pacificação do país" e contribuía "para estimular os bloqueios feitos por camionistas em estradas do país".
Os bloqueios, em mais de 300 vias de 20 Estados, causaram prejuízos nos setores alimentar e médico, entre outros. Antes da intervenção de Bolsonaro, no entanto, já dera uma ordem de Alexandre de Moraes, juiz do STF, a autorizar os governos estaduais a utilizarem a polícia para conterem as paralisações, contribuíra para a desmobilização dos camionistas, um setor profissional próximo do bolsonarismo.
Concluído o discurso de Bolsonaro, foi a vez do seu ministro da Casa Civil (principal cargo político no governo brasileiro) se dirigir à imprensa. Ciro Nogueira disse que o presidente cessante o nomeou representante do governo na equipa de transição, liderada pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, para o novo Executivo.
Nogueira, ao contrário de Bolsonaro, referiu-se a Lula como "presidente".
Outros aliados de Bolsonaro já se haviam pronunciado, antes dele, sobre a eleição de Lula. O senador Flávio Bolsonaro, primogénito de Jair, deu a entender nas suas redes sociais, ainda na segunda-feira, 31, que o pai aceitaria a derrota. "Obrigado a cada um que nos ajudou a resgatar o patriotismo, que orou, rezou, foi para as ruas, deu seu suor pelo país que está dando certo e deu a Bolsonaro a maior votação de sua vida! Vamos erguer a cabeça e não vamos desistir do nosso Brasil! Deus no comando!".
A primeira-dama, Michelle Bolsonaro, reagiu com um trecho bíblico: "Salmos 117: louvai ao Senhor todas as nações, louvai-o todos os povos. Porque a sua benignidade é grande para connosco, e a verdade do Senhor dura para sempre. Louvai ao Senhor".
Sergio Moro disse que "a democracia é assim" e que "o resultado de uma eleição não pode superar o dever de responsabilidade que temos com o Brasil".
Segundo o ex-ministro do Ambiente, Ricardo Salles, "a eleição traz muitas reflexões e a necessidade de buscar caminhos de pacificação de um país literalmente dividido ao meio". Para Nikolas Ferreira, o deputado mais votado do Brasil, "os gritos de comemoração deles hoje se tornarão gritos de desespero amanhã".