Perfil: Jacques Vergés, advogado.Esta semana começou em Phnom Penh o julgamento de Khieu Samphan. Antigo presidente do Camboja (1976-79) e número dois dos khmers vermelhos (braço direito de Pol Pot), Samphan é acusado de crimes contra a humanidade, na qualidade de responsável por uma política de terror que levou ao extermínio de mais de dois milhões de pessoas. .As atenções das centenas de jornalistas, porém, não estavam focadas na figura frágil do réu, hoje com 76 anos, mas sim no seu advogado, sete anos mais velho mas com aspecto bem mais jovial, sorriso trocista e olhar irónico. .Jacques Vergès, o advogado, começou por questionar a legitimidade do processo, por uma questão formal. "Verifiquei que as 16 mil folhas (em inglês) que constituem a acusação não estavam traduzidas em francês. Ora, o francês é uma das línguas oficiais do tribunal e, portanto, sou incapaz de saber porque se queixam do meu cliente", afirmou. Resultado: o tribunal especial, patrocinado pela ONU, decidiu adiar indefinidamente a audiência e aprovar uma advertência a Vergès "por causa do seu comportamento"..Rodeado de controvérsia, Vergès ocupa há muitos anos as páginas dos jornais: pelas posições públicas, pelas actividades políticas, pelos réus que tem defendido, pela transformação que faz da sala de audiências em arena de combate, pela pose. Conta-se que, para realçar a lógica implacável do seu raciocínio, abre sempre as suas alegações com a mesma frase: "E foi para isto que me foram maçar?".Quem é este homem que começou a vida como resistente ao ocupante nazi em França e surpreendeu toda a gente ao aceitar defender o ex-chefe da Gestapo em Lyon Klaus Barbie? Quem é o político a quem Barbet Schroeder dedicou um filme que intitulou O Advogado do Terror? .Nasceu em 5 de Março de 1925, na Tailândia, filho de uma professora vietnamita e do cônsul de França em Ubon Ratchatani. Aos três anos, morreu-lhe a mãe. O pai regressou então com os filhos à ilha da Reunião, onde a sua família tem raízes desde o século XVII..Aos 17 anos, já está em França, envolvido nas actividades da resistência. Depois da libertação adere ao Partido Comunista, onde começa a distinguir-se pela heterodoxia. Será eleito secretário da União Internacional de Estudantes (com sede em Praga), contra a opinião do PCF, que acaba por abandonar em 1957, um ano depois do esmagamento da revolta de Budapeste pelos tanques do Pacto de Varsóvia..Já advogado, intensifica as actividades anticolonialistas: abre escritório em Argel e começa sistematicamente a defender militantes argelinos da FLN torturados pelo exército francês. Fica famosa a sua defesa de Djamila Bouhired, acusada de autoria de um atentado num café de Argel. Torturada e codnenada à morte, Djamila seria, algum tempo depois, amnistiada, graças à pressão de uma campanha internacional dirigida pelo próprio advogado. Depois de libertada, casa com Vergès. Têm dois filhos. .Após a independência, Vergès ocupa alguns cargos no novo regime e funda uma revista - Révolution Africaine - que se tornou muito popular junto dos movimentos de libertação africanos. Já tinha cortado com Moscovo quando, em 1963, volta a surpreender toda a gente ao encontrar-se em Pequim com Mao Tsé-tung. A foto, que dá a volta ao mundo, testemunha o momento em que Vergès adere ao maoísmo. .Mantém-se em Argel até 1970. É então que acontece o mistério ainda hoje por esclarecer: Vergès desaparece. O seu último acto público foi um comício anti-imperialista, na Mutualité, em que tomou a palavra, ao lado de Connie Mathews, dos Panteras Negras, e Agostinho Neto, o líder do MPLA e futuro primeiro presidente de Angola..Durante oito anos ninguém sabe dele, nem sequer a mulher e os filhos. Quando surge de novo em Paris recusa-se a esclarecer (até hoje) o enigma, alimentando todo o tipo de especulações. Terá estado no Camboja com os khmeres vermelhos, cujos líderes conheceu na adolescência, nos cafés de Paris e na Universidade? Andou pela Líbia? Regressou a Moscovo, tornando-se agente secreto do KGB? Serviu de intermediário entre Carlos, 'o Chacal' (que mais tarde defenderia em tribunal) e Magdalena Kopp, famosa terrorista e companheira de Carlos? O mais consistente dos seus biógrafos, Bernard Violet, avança outra hipótese (em Vergès, Le Maître de l'Ombre): uma fuga estratégica, perante as ameaças da família de Moisés Tschombé. Ainda em Argel, Vergès teria estado envolvido numa tentativa para evitar a deportação do antigo líder da secessão do Katanga, que acabaria por morrer, de forma misteriosa, na Argélia..Regressado, aparentemente, em força, Vergès volta a surpreender toda a gente em 1987, ao defender Klaus Barbie, o "carniceiro de Lyon". Este seria condenado a prisão perpétua, o advogado aproveita o julgamento para voltar a fazer acusações à França pelas torturas na Argélia, evocando tudo isso mais tarde num livro curiosamente intitulado Beauté de Crime. .Estava aberta a última fase da sua controversa carreira, em nome da luta contra o Estado capitalista. Não admira, por isso, que tenha também defendido o filósofo Roger Garaudy (acusado de negar o Holocausto), Carlos, 'o Chacal', Slobodan Milosevic, Tarek Aziz, Saddam Hussein..Conta-se que um dia lhe perguntaram se seria capaz de defender Hitler. Conta-se que teria respondido: "Até defendia Bush, se ele se confessasse culpado." Si non è vero...