Já viu quantas pontes tem este ano o calendário?

As pontes de todos os suspiros. Podem ser suspiros bons, quando as pontes acrescentam descanso ao período de 22 dias de férias. Ou suspiros menos bons se nos acabam com as pontes e as tolerâncias de ponto em nome da economia. Não sendo palpáveis, transitáveis nem sobre o rio, estas pontes no calendário mexem mais connosco do que todas as outras pontes do mundo juntas.
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Natal. Réveillon. Carnaval e Páscoa. Santos populares. Se há coisa que anima um português é sentir que há feriado a chegar, especialmente se trouxer consigo pontes e fins de semana prolongados. Só o nome evoca escapadinhas e panquecas ao pequeno-almoço, como se em cada uma destas pausas pudéssemos fabricar uma história nova. São datas que abraçamos com tal fervor que o mais certo é, mal tenhamos assimilado as quatro pontes e os quatro fins de semana longos de 2020, refilarmos porque em 2019 foram cinco pontes, o que significa que já entrámos o ano a perder.

"Se algumas das maiores figuras da história não trabalhavam horas imensas, talvez a chave para descobrir o segredo da sua criatividade resida em compreender não apenas como trabalhavam, mas como repousavam e como as duas coisas se relacionam", sugere o norte-americano Alex Soojung-Kim Pang no seu livro Descansar: A Razão pela qual Conseguimos Fazer mais Quando Trabalhamos menos (da Temas e Debates). "O descanso não tem de ser necessariamente dormir, mas fazer uma atividade como caminhar para desviar a atenção dos problemas do trabalho", acrescenta o consultor tecnológico de Silicon Valley, defensor de mais repouso - que não significa menor produtividade, muito longe disso - para se transformar a economia global.

Foi durante crise de 2012 que a troika veio, ajuizou e suprimiu quatro feriados do calendário nacional de uma assentada: dois civis - Implantação da República e Restauração da Independência, respetivamente a 5 de outubro e a 1 de dezembro - e dois religiosos - Dia de Todos-os-Santos, a 1 de novembro, e o feriado móvel de Corpo de Deus. De repente, era como se nos apontassem o dedo de fora e decretassem que parar naqueles dias era tolo, qual tributo qual carapuça! Tivemos de esperar até 2016 para ouvir o primeiro-ministro, António Costa, anunciar que a reposição destes feriados era justa e necessária: "Há acontecimentos fundamentais cuja memória não pode estar à mercê de fins propagandísticos", justificou. Os portugueses rejubilaram.

Na verdade, registos históricos indicam que já na Antiguidade povos como os egípcios, os hebreus, os gregos e os romanos celebravam datas importantes ligadas às colheitas, adoração de divindades e morte de personalidades notáveis, destacando-as da vida quotidiana. Na Idade Média, a própria Igreja Católica integrou vários desses rituais pagãos para lançar outros (mais virtuosos) da sua autoria.

O Carnaval foi um deles: se não podia evitar que as pessoas tivessem um período de excessos, pelo menos garantia que não os cometiam no tempo da Quaresma até à Páscoa, quando deviam rezar, privar-se de sexo e prescindir de carnes vermelhas.

Certo é que a história não é uma ciência estática, nem os feriados a que dá azo

No Brasil, por exemplo, o achamento do país começou por se comemorar a 3 de maio, dia em que se pensava que as caravelas de Pedro Álvares Cabral tinham avistado Porto Seguro, na Baía. Afinal não, foi a 22 de abril de 1500, um revés que justificou que se mudasse a data de um dos feriados brasileiros mais representativos. 12 de outubro de 1492: Cristóvão Colombo chegou à América Central e a América Latina ganhava um feriado de peso. Até ao dia em que os países colonizados embirraram com a aclamação da chegada do colonizador e muitos substituíram o tema da efeméride: desde 2000 que o Chile tem o Dia do Descobrimento de Dois Mundos; em 2002, na Venezuela, Hugo Chávez mudou o nome para Dia da Resistência Indígena; na Argentina, em 2010, Kirchner chamou-lhe Dia da Diversidade Cultural Americana; em 2011, na Bolívia de Morales, passou a ser o Dia da Descolonização.

Ainda no Brasil, a entrada em vigor da reforma trabalhista no final de 2017 permitiu que feriados sejam suspensos mediante a negociação entre patrões e trabalhadores: se não der jeito que calhe à segunda-feira, pode transitar para outro dia da semana ou mesmo para outro mês.

Na China, excecionalmente, tentando conter a propagação do coronavírus, alargou-se até 2 de fevereiro o feriado do Ano Novo lunar (que ocorre entre 24 e 30 de janeiro) para que dezenas de milhões de chineses em trânsito evitassem ou adiassem o regresso a casa - a maioria tinha aproveitado para visitar a sua cidade natal ou fazer turismo.

De resto, a avaliar por um estudo da empresa de consultoria Mercer sobre condições laborais em 64 países, Índia e Colômbia são os que mais feriados têm no mundo (18), seguidos da Tailândia, do Líbano e da Coreia do Sul (16) e do Japão (15). Entre os países europeus, a Finlândia e a Espanha figuram entre os mais beneficiados (15 e 14 feriados, por esta ordem), com a Eslováquia e Portugal ex aequo em terceiro lugar: 13 feriados nacionais a que se soma o Carnaval, não incluído na lista oficial por depender de ser decretada a tolerância de ponto.

Na prática, duas das pontes e um dos fins de semana grandes deste ano só são possíveis graças ao tal retorno do Corpo de Deus (11 de junho, uma quinta-feira), Implantação da República (5 de outubro, segunda) e Restauração da Independência (1 de dezembro, terça-feira), sem os quais estaríamos cabisbaixo a olhar para as agendas. A má notícia é que somos dos países que mais laboram, segundo um relatório da Fundação Europeia para a Melhoria das Condições de Vida e de Trabalho. Entre horários que são dos mais curtos na função pública e dos mais longos no privado, estamos acima da média nas horas trabalhadas, pelo que nunca paramos como devíamos apesar dos feriados.

E podíamos muito bem ter ficado sem eles não fosse a conclusão de que suprimi-los não aumentou a produtividade, limitou-se a instalar o desânimo: "Se olharmos para os dados do tempo médio de trabalho na Europa, apenas a Polónia, a Letónia e a Grécia têm maior número de horas anuais por trabalhador em relação a Portugal", apontou ao DN Mário Gonçalves, diretor da divisão que gere o trabalho temporário especializado na Hays Portugal. Isso demonstra que não é, com certeza, o número de horas de trabalho anual que gera resultados, mas a estratégia.

"Figuras tão diferentes como Charles Dickens [escritor], Henri Poincaré [matemático] e Ingmar Bergman [realizador] partilhavam uma capacidade quase sobre-humana para se concentrarem. Contudo, só passavam algumas horas a fazer o que poderíamos reconhecer como o seu trabalho mais importante", confirma o consultor Alex Soojung-Kim Pang.

Um estudo realizado nos anos 1950 para avaliar a produtividade de cientistas descobriu que os que cumpriam 35 horas semanais produziam metade dos colegas das 20 horas, e que os das 25 horas não rendiam mais do que os das cinco. Moral da história: em vez de passarmos o dia no escritório, melhor seria passearmos, fazer desporto, dormir a sesta, diz Pang.
É para isso que servem os feriados.

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