Denis Mukwege: "Já tratei três gerações de mulheres vítimas de violação"
No Parlamento Europeu usou palavras duras para explicar o que se passa no seu país. É preciso falar assim para que os europeus compreendam esta realidade?
Quando falamos de violação como arma de guerra, a maioria das pessoas pensa que é uma relação sexual não consentida. Essa destrói profundamente a vítima. Mas as pessoas não têm noção da violência quando uma mulher não é apenas violada, mas violada coletivamente à frente dos filhos, do marido, da comunidade. E, além disso, sofre graves lesões no aparelho genital. É simplesmente negar a sua humanidade. Penso que, hoje, se não forem tomadas boas decisões no que diz respeito a estes atos é porque há uma confusão na cabeça das pessoas e se confunde esta barbárie com uma relação sexual. É preciso fazer essa distinção.
Houve algum momento específico que o marcou?
Cada mulher violada tem a sua história. E cada história é tão dura e difícil de viver quanto a que vem a seguir. Pensei que já tinha visto e ouvido a pior das coisas, mas sou surpreendido porque, a cada momento, descubro que há histórias piores do que as que tinha conhecido antes. Quando me perguntam pela pior história, questiono-me: por qual é que começo? Conheci uma mulher que veio ao hospital. Quando se tornou escrava sexual toda a sua família foi morta pelos violadores. Ela ficou sozinha no mundo. Mas estava grávida dos que exterminaram a sua família. Um mês depois deu à luz e disse-me que não podia viver com esta criança, porque cada vez que olhava para ela tinha a imagem de toda a família desaparecida. Ficar com aquela criança era uma lembrança constante do que aconteceu e isso fazia-lhe mal. Mas a criança é completamente inocente.
Alguma vez sentiu medo?
Quando uma arma entra na sua casa, os seus filhos são feitos reféns e disparam contra si. Quando, sem querer, o segurança que o acompanha há 20 anos é atingido pela bala. Quando cai e pensa que está morto. E, quase por milagre, está vivo. Quando está coberto pelo sangue de alguém que lhe foi muito próximo, que sempre o serviu com lealdade, e que, para o salvar, é ele que morre... É preciso não ser humano para não se ter medo.
Nada mudou desde que começou?
Há 16 anos que trabalho com estas mulheres e o que vejo é muito mais uma mudança de método, mas a violência continua. Como a impunidade parece estar consagrada, o que acontece é que, infelizmente, quem comete as violações continua a fazê-lo com total impunidade. Até podemos ver uma diminuição dos números, mas a gravidade das lesões aumentou.
Trata estas vítimas no hospital, mas também tenta consciencializar as pessoas para os crimes. Qual das duas é mais importante?
Tratei mulheres há 12, 13 ou 14 anos. E as filhas, que são fruto de violações, já tiveram filhas que também foram violadas. Ou seja, já tratei três gerações de mulheres vítimas de violação. E, às vezes, uma mulher é violada duas vezes. Por isso, optei por deixar mais vezes o hospital para alertar a comunidade internacional de que é inaceitável que seres humanos sejam tratados desta maneira. Quando há uma situação de guerra, tudo é permitido e as pessoas cometem atos ignóbeis sobre as mulheres que destroem toda a família e o tecido social. É muito importante travar isto. Às mulheres que precisam de tratamento, é óbvio que temos de dar tratamento, porque elas já são vítimas, mas se só nos ficarmos por aí, e não fizermos mais nada, estamos a seguir por um mau caminho.
O Sakharov, sendo um prémio europeu, é ainda mais importante?
Este prémio, em relação a outros, tem algo muito importante. É dado pelo Parlamento Europeu, onde se sentam 750 representantes do povo, que representam 500 milhões de pessoas. Para mim é uma caixa de ressonância sem precedentes. Estou certo de que todos juntos, com vontade política, podemos permitir às mulheres terem uma vida normal mesmo em cenário de conflito.
(Entrevista realizada juntamente com a Antena 1)
Puiblicado originalmente a 27 de novembro de 2014