"Já passou de português". Brasil e Portugal ou a dupla negação
Portugal, meu avôzinho (Manuel Bandeira)
O livro de Carlos Fino Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento apresenta uma análise histórica muito bem documentada e fundamentada de uma realidade factual inegável, que são as manifestações de antiportuguesismo presentes, latentes ou expressas na cultura brasileira. A reação de viva negação que este livro veio encontrar, em Portugal e no Brasil, ilustra a ideia que procurarei aqui desenvolver da "dupla negação", na qual assenta uma relação luso-brasileira que, paradoxalmente, encontra nessa dupla negação as raízes passionais dos seus encontros e desencontros.
Noel Rosa, numa sua canção, recorda-nos que "tudo aquilo que o malandro pronuncia/com voz macia/ é brasileiro, já passou de português" (não tem tradução, 1930). Passar de português para brasileiro era o destino manifesto e natural dos portugueses no Brasil. Mas esta negação do português tem a sua origem (como Carlos Fino mostra) no próprio projeto e sonho dos portugueses em relação ao Brasil: criar além-Atlântico uma verdadeira pátria digna de um império, longe do acanhado bocado de Europa que nos coube. Disse-o o próprio rei de Portugal, quando decidiu estabelecer no Brasil a sede de um império que, não tendo o mesmo brilho e riqueza do passado, dominava ainda assim uma rede marítima comercial que ligava quatro continentes, a Ásia, a África, a América e a Europa. Como estranhar que a corte do Rio de Janeiro, face a esse grandioso projeto, preferisse abandonar Portugal ao governo de um marechal inglês? Quando fomos colónia dos brasileiros, fomos na realidade colónia do próprio sonho português realizado, tal como tinha sido formulado por António Vieira ou Luís da Cunha e aplicado pela administração e pela diplomacia portuguesas, até culminar no Reino Unido de Portugal e Brasil, que só poderia ter a sua sede no Rio de Janeiro.
Sendo uma independência de colonos portugueses contra a pretensão dos portugueses de Portugal de recuperarem para o torrão lusitano da Europa a sede do império, a afirmação da identidade brasileira, tão distante que estava dos índios e dos negros, só podia fazer-se pelo processo de negação. E essa negação que os portugueses do Brasil necessariamente tiveram de fazer de Portugal ecoa hoje na negação que portugueses e brasileiros vêm exprimir agora da realidade dessa mútua rejeição original. Negação da negação, portanto.
No seu ensaio A Negação (1925), Freud explicava como "o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode assomar à consciência, na condição de ser negada", assumindo que "a negação é um modo de tomar conhecimento do que é reprimido, embora, evidentemente, sem aceitar o que foi reprimido". Do mesmo modo, a repressão do conteúdo português, tão fortemente presente no Brasil, foi condição da independência, mas deu lugar a uma falsa consciência, que veio exprimir-se nos diferentes nativismos, assim como a negação atual desta realidade não vem contribuir em nada para uma melhor compreensão entre portugueses e brasileiros.
O Brasil, após 200 anos de crescimento e diferenciação, não precisa mais de se definir em relação a Portugal e as novas gerações brasileiras sabem-no bem. Como, do nosso lado, não partilhamos mais a ilusão de ver no Brasil uma continuação de nós próprios, tal como era expresso em alguns antigos sonhos de comunidade luso-brasileira.
Uma relação saudável entre dois países passa pela consciência plena de que, por muito que tenhamos em comum, somos definitivamente estrangeiros. É só assim que se estabelece um diálogo limpo e sem preconceitos, é só através dessa consciência de estranheza que podemos partilhar até ao fundo as nossas afinidades e estabelecer entre nós novos entendimentos.
Reconheçamo-nos uns aos outros como plenamente autónomos, antes de estabelecermos as fundações da fraternidade ou a promessa da comunidade. Portugal não é avô do Brasil, o que sucede é que os portugueses e os brasileiros têm os mesmos avós.
Diplomata e escritor