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Ou vai ter de ser o apoio do Estado a fazê-lo? Os media estão em crise e ninguém consegue entender-se sobre o que fazer.
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A questão dos apoios aos meios de comunicação social é parecida com a anedota do "antes de o ser já o era". Estava destinada à polémica, a interpretações, ataques, ilações. Nestes tempos maniqueístas da discussão de argumentos com as armas das redes sociais, vence quem fala mais alto, o que no Twitter ou no Facebook quer dizer com ideias mais simples (ainda que erradas), e era mais do que certo que qualquer apoio do Estado aos media ia dar no que aconteceu nesta semana quando foi divulgado o programa de emergência para os meios de comunicação social portugueses atingidos pela crise causada pelo covid-19.

Não ajudou que os critérios não fossem óbvios para o grande público - algoritmos complexos combinavam perdas de publicidade e audiências - e que misturassem quem pratica jornalismo - digital, rádio e escrito - e quem, na mesma antena e nas mesmas contas, inclui entretenimento, como as TV.

Também ficaram aquém do que poderiam ter sido, aproveitando para acompanhar uma certa contemporaneidade internacional: deixaram de fora pequenos meios independentes, digitais, startups de jornalismo (Fumaça, Shifter, entre outros). Com o argumento, certo, de que esses meios não tiveram quebras de publicidade, porque dela não dependem, perdeu-se o que podia ter sido um sinal de modernidade e inovação que tanta falta faz ao mercado de media em Portugal.

Como aliás aconselhava, num estudo sobre opções de política de media digitais, o Reuters Institute para o Estudo do Jornalismo, da Universidade de Oxford, é obrigação dos Estados europeus proteger a "liberdade de expressão", fornecer uma "base igualitária de apoio a um negócio sustentável de notícias" e "orientar-se no sentido de um futuro digital, móvel, e dominado pelas plataformas que os consumidores estão a abraçar - não no sentido de defender o passado dominando pelos media em papel e pelas televisões". Esta última alínea será importante para o que se seguirá nesta matéria.

Ainda assim, no geral, valeu o esforço português, valeu a intenção e a quantia de 11,25 milhões de euros - nada pouco se compararmos com outros apoios, nomeadamente às artes e aos artistas. Mas valeu, também, o balão de ensaio que foi todo este processo, erros incluídos. Aqui mostraram-se as dores de cabeça que pode enfrentar quem tome em mãos a tarefa de tentar ajudar os media, sobretudo a partir da esfera do Estado.

Porque ninguém se engane: a crise dos media não começou com o covid-19 e não vai acabar depois. "É difícil imaginar uma indústria menos preparada para uma pandemia global do que o negócio dos media", resumia o especialista de media americano Mathew Ingram no Columbia Journalism Review. "Mesmo antes do coronavírus, já estava a latejar de uma série de golpes, a maior parte dos quais servidos pelo Google e pelo Facebook e o seu domínio do mercado da publicidade." Desde 2008, desapareceram quase metade dos empregos nos EUA: mais de 38 mil jornalistas, editores e fotógrafos no desemprego.

Estranho, em Portugal, é que os argumentos, quer dos que estão a favor quer dos que rejeitam o apoio estatal, continuem a limitar-se ao campo ideológico - como a falácia de relacionar a independência do jornalismo com apoios do Estado. Quem trabalha há mais de um segundo nos media não pode ter a ingenuidade de pensar que as pressões, no mundo de hoje, se resumem à política. Por tudo o que aqui foi dito, é fácil de explicar que se há área de que os media estão muito mais dependentes é da empresarial, e isso nunca impediu nenhum meio de aceitar um investimento privado - venha como vier. Aliás, é essa a natureza do atual modelo de negócio.

Por esse mundo fora, como dizia nesta semana o diretor do Reuters Institute, Rasmus Kleis Nielsen, "os argumentos sobre a importância do jornalismo vão da esquerda/ social-democrata, focada na promoção da equidade e da inclusão, à direita/ conservadores focados na promoção da cultura nacional e na coesão social".

E ninguém discute que o jornalismo, apesar de já não fazer parte da equação do negócio - esse passou para as plataformas - continua a ser insubstituível do ponto de vista cívico e social: nada tomou o seu lugar de vigilante, explicador da vida e do mundo. Tudo isto ficou ainda mais provado numa pandemia e vários estudos internacionais mostram como o jornalismo sério salvou vidas.

O caso para o apoio ao jornalismo e a sua evolução para fora do simples quadro do negócio faz, assim, todo o sentido, e tem de ultrapassar ideologias e fações. Como explica o CEO da Associação Mundial de Editores (Wan-Ifra), Vincent Peyrègne, aceita-se que a "imprensa é um instrumento de cultura, cuja missão é entregar informação rigorosa, defender ideias e servir a causa do progresso humano."

Neste sentido, é normal que o apoio venha do Estado, o natural garante do bem comum. Mas não virá mal ao mundo que privados, endinheirados e bem-intencionados, e com vontade de retribuir a sorte que tiveram, contribuam. Em ambos os casos, a dependência ou a independência será responsabilidade fundamentalmente de quem pratica uma profissão que tem tanto mais valor quanto mais é valorizada. E o rigor, ou a falta dele, faz também parte deste modelo de negócio - quem consome escolhe.

É tolo que, em Portugal, a comunidade jornalística e editorial não aproveite a crise para se unir em torno de soluções, e continue a digladiar-se em torno dos problemas. Como assistimos nesta semana entre o Observador e o Público. É suicidário que essas diferenças de opiniões, que já se evidenciavam nas discussões antes da crise sanitária, tenham passado incólumes por esta hecatombe.

É mais um sinal de como o jornalismo continua a viver numa bolha imune. Mais uma vez, que ninguém se engane: o jornalismo só terá valor enquanto fizer falta, e só fará falta enquanto alguém lhe der valor. Seja quem for.

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