Já não é preciso visão raio-X para ver estacas da Lisboa pombalina
As estacas sobre as quais o Marquês de Pombal fez reconstruir Lisboa após o terramoto de 1755 deixaram de fazer parte apenas do imaginário. A partir de hoje, a exposição (Re)Fundações de Lisboa, na sede do Banco de Portugal, põe a nu esta parte da cidade, até agora oculta.
Apesar do bom estado de conservação das estacas que ocupam o centro da sala desta exposição, nada de enganos: faziam mesmo parte do sistema que desde o século XVIII suporta os edifícios da Baixa lisboeta. Feitas de pinho, ainda verde e ao qual não era retirada a resina, as estacas (na vertical, como se vê na foto) e as traves e longarinas (na horizontal) formam uma espécie de grelha que constitui o tão falado sistema de estacaria - que para se conservar em boas condições até aos dias de hoje precisou apenas da água do rio.
"Mesmo para os arqueólogos, é muito raro ter esta oportunidade de ver tanta estacaria, tão bem conservada", explica Artur Rocha, responsável pelas escavações que desde 2008 têm sido feitas no âmbito das obras de reabilitação e restauro da sede do Banco de Portugal, que ocupa a antiga Igreja de São Julião. A estacaria, técnica bem documentada desde Vitrúvio, arquiteto romano que viveu no século I a.C., já era usada em Lisboa antes do terramoto. No entanto, explica o arqueólogo, "foi durante a reconstrução da cidade que passou a ser obrigatória e foi usada em grande escala".
"A ideia de mostrar a estacaria é também dar um contributo para o conhecimento da cidade e para estes elementos que até agora eram muito conhecidos, quase como folclore urbano, mas não eram visíveis, não eram tangíveis", refere ainda o arqueólogo. Ou seja: "Dar um bocadinho de tangibilidade ao mito que se criou à volta da estacaria pombalina."
"Por outro lado", assinala Sara Barriga, coordenadora do Museu do Dinheiro, "pode fazer-se este exercício de pôr os óculos de raio--X e ao olhar para este elemento [as estacas] perceber o que está realmente sobre os nossos pés, o que nos sustenta". A responsável salienta outro elemento da exposição: o desenho na parede que, com a escala humana, dá uma ideia imediata da profundidade a que estão as estacas. E para melhor se perceber, vale a pena subir as escadas que se encontram ao fundo da sala para, lá de cima da plataforma, perceber a distância, que equivale à real, a que se encontram as fundações da cidade.
A ideia de mostrar a estacaria surgiu após a curiosidade demonstrada pelos visitantes que desde abril do ano passado se dirigem a esta antiga igreja para descobrir um pouco da muralha medieval mandada construir por D. Dinis. No corredor de acesso à muralha, uma pequena mostra exibe vários artefactos encontrados durante as escavações. Entre moedas, amuletos e pequenos pedaços de utensílios da era romana aos quais vídeos dão de novo a forma original é também apresentada uma estaca.
Na mostra que hoje abre ao público, há alguns textos de apoio, mas a ideia, refere Sara Barriga, é que a exposição seja "mais intuitiva do que explicativa, e achamos que a escala dará essa ligação direta entre o visitante e a peça em si". Além disso, sublinha outro aspeto: "A exposição funciona como um todo que nos envolve com o som, com a imagem, com alguns textos e com a ideia da escala."
A componente sonora foi uma ideia de Artur Rocha. Quando a equipa começou a pensar o que poderia replicar a ideia de trabalho de reconstrução em grande escala no século XVIII, sem a tecnologia que hoje temos à nossa disposição, lembrou-se das cantilenas recolhidas por Giacometti ainda nos anos 1970. E são essas que ali se ouvem.
Um desenho da estacaria à escala real e um vídeo que passa algumas das mais de 30 mil fotografias que documentam minuciosamente, primeiro as sondagens de diagnóstico (em 2008) e depois as escavações (entre abril de 2010 e março de 2011) realizadas pela equipa liderada por Artur Rocha, completam a exposição, que conta ainda com um programa de atividades que se estendem até ao final do ano