"Já fomos o país mais violento do mundo em tempos de paz. Mas em julho tivemos 20 dias sem homicídios"

Sucesso do presidente Bukele no combate ao crime garante-lhe tal popularidade que ambiciona um segundo mandato à frente de El Salvador, apesar de a tradição constitucional ser de um. De visita a Lisboa, a vice-ministra salvadorenha das Relações Exteriores, Adriana Mira, falou ao DN do plano de controlo territorial, admirado mas também criticado.
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Comecemos pelo assunto mais falado atualmente sobre El Salvador, que é a política prisional do presidente Nayib Bukele. É uma política que de fora é vista de duas maneiras: por um lado, há quem destaque o sucesso na redução da taxa de homicídios; por outro lado, há quem diga ser uma forma grosseira de fazer justiça sem se respeitar plenamente os direitos humanos. Como explica esta política e o seu alcance?
Bem, talvez seja importante começar por dizer que não existe uma política prisional em El Salvador. O que existe é um plano de controlo territorial que tem várias fases. Começou, obviamente, com uma parte de imersão no território, porque temos de ter em conta o contexto de que durante muitos anos, em tempos de paz, os bandos tinham tomado o controlo do território e em muitas zonas a polícia não podia entrar ou a polícia estava, digamos, infiltrada por eles. E durante muitos anos, e digo isto como vice-ministra, mas também como salvadorenha, havia um flagelo no país. Uma situação que em 2015 fez com que atingíssemos um pico de homicídios, mais de 6500 naquele ano, o que infelizmente nos posicionou como país mais violento do mundo em tempos de paz. Hoje, de facto, fechamos o mês de julho com 20 dias sem homicídios, mas isso tem muito a ver com o plano de controlo territorial e o plano de controlo territorial não tem apenas a fase de colocar os membros dos gangues na prisão, o que é muito necessário, porque não podemos dizer que um membro de um gangue é inocente, na verdade, para se juntar a um gangue, um membro tem de assassinar pelo menos uma pessoa. Por isso, fazer parte de um gangue já faz de si um criminoso. Há uma parte muito importante do plano de controlo territorial que é a reconstrução do tecido social, que é precisamente para evitar que isto volte a acontecer e para lançar as bases e as oportunidades para os jovens e as crianças. É claro que, como se trata de uma situação tão sui generis, talvez seja difícil de compreender do exterior, e fala-se muito dos direitos humanos dos membros dos bandos, claro que eles têm direitos humanos, nós reconhecemo-los, mas fazemos prevalecer os direitos humanos da maioria dos salvadorenhos, que são bons.

Mas todos os acusados de serem membros de grupos criminosos têm direito a um processo judicial? Todos serão submetidos a um tribunal?
Bem, quando estamos sob o regime de emergência, tem havido, sim, processos, os processos estão a ser respeitados e estamos também a trabalhar com diferentes organizações internacionais para isso. De facto, o Presidente Bukele sempre protegeu os direitos humanos, embora exista um gabinete do provedor dos direitos humanos que não faz parte do poder executivo, ele criou uma comissão dos direitos humanos que faz parte do poder executivo, faz parte da Casa Presidencial. Esta comissão existe há cerca de quatro meses. O comissário está a verificar todas as prisões, está a verificar os processos. De facto, estiveram recentemente no CECOT, que é o maior centro que foi construído precisamente para este fim, porque as condições, e falando de direitos humanos, as condições das pessoas que estão privadas da sua liberdade neste momento no país, quer sejam membros de gangues ou não, melhoraram muito. Antes, tínhamos lotações incríveis de prisões, que talvez não se encontrem nos meios de comunicação social, mas que estavam em piores condições porque os presos não cabiam. Por isso, foi necessário criar uma infraestrutura e o comissário está a fazer os controlos. Há dias, passou uma reportagem na Caracol TV, da Colômbia, em que alguns membros de gangues também falavam sobre este assunto e reconheciam que as condições melhoraram, que estão agora em melhores condições.

El Salvador é visto como um modelo nesta política de combate ao crime por outros países da região. Será que vão aplicar medidas semelhantes noutros países?
Sim, mas penso que é um pouco ambicioso falar sobre a política interna de outros países, não é a minha função como vice-ministra dos Negócios Estrangeiros fazê-lo.

Mas reconhece que há países que têm curiosidade em conhecer o modelo salvadorenho?
Claro que existem, sem dúvida. Talvez por parte de alguns governos, mas muito mais por parte das populações dos outros países. Não é segredo que a América Latina tem muitos desafios de segurança que se agravaram na América do Sul nos últimos anos. E o modelo do Presidente Nayib Bukele é visto pela população de outros países como sendo replicável. Obviamente que não queremos fazer um copy and paste porque cada país tem a sua própria génese de problemas. O que estamos abertos a fazer, e de facto já estamos a fazer, é cooperar com o nosso conhecimento, mas cada país saberá se o deve ou não aplicar. Por exemplo, já estamos a trabalhar com as Honduras, precisamente porque há membros de gangues que fogem da situação de segurança em El Salvador e vão para as Honduras e para a Guatemala. Por isso, temos uma comissão binacional com estes países para coordenação e também recebemos delegações das Honduras e de outros países da América do Sul para conhecerem o modelo CUBO, que são estes centros de oportunidades para jovens que estão precisamente nas zonas que anteriormente tinham sido tomadas pelos gangues. O Haiti, por exemplo, fez-nos um pedido formal para aplicarmos o plano de controlo territorial no país. Mais uma vez, não queremos copiar e colar porque entendemos que cada país deve aplicar o que considera melhor, mas vamos cooperar abrindo um gabinete de cooperação. Isto já foi formalizado entre os dois ministros dos Negócios Estrangeiros.

Outra questão que é muito falada em El Salvador e que está relacionada com esta política territorial é a popularidade do Presidente Bukele e a sua intenção de ter um segundo mandato, apesar de a tradição constitucional ser de um só mandato. Está já decidido que haverá uma segunda candidatura ou trata-se ainda de um debate?
Foi decidido, ele já anunciou que se vai candidatar a um segundo mandato, mas disse-o bem, é uma candidatura, a reeleição não é automática. Para que o Presidente possa concorrer à reeleição, terá de se demitir, é o que diz a Constituição e foi interpretado pela nossa câmara constitucional. E tem de ser seis meses antes. Ele já anunciou a sua intenção de o fazer, obviamente que cabe ao povo salvadorenho elegê-lo ou não, porque também há outros candidatos políticos. O que vos posso dizer é que, hoje, o Presidente tem mais de 90% do apoio do povo.

Quando leio um pouco sobre o perfil do Presidente Bukele é um difícil avaliá-lo ideologicamente, porque ele mudou de partido e de posições políticas. Como é que o Presidente se insere nas correntes atuais da América Latina? Há os países mais à esquerda, como o Brasil de Lula de Silva, e outros mais à direita. El Salvador tenta não estar em nenhum dos blocos?
Definitivamente, não. A política do Presidente é uma política de não ideologia, porque muitas vezes essas ideologias levam-nos a tomar determinadas decisões que podem ou não ser convenientes para a população. Uma das premissas do Presidente é que vai fazer o que é conveniente para o povo salvadorenho e é assim que o vemos navegar entre uma decisão ou outra, entre uma tendência ou outra, mas com o simples interesse de que aquilo que decide seja do interesse da população salvadorenha. Recentemente, por exemplo, vimos publicado um mapa da região, agora maioritariamente a vermelho, porque a maior parte deles são países de esquerda, e a verdade é que Salvador tinha uma tonalidade amarela, porque nunca se definiu como uma ideologia, e, a meu ver, isso é muito inteligente, porque lhe permite tomar decisões objetivas.

Como está a economia de El Salvador? Fala-se muito da oficialização das Bitcoin, mas a economia na prática está a crescer ou está estagnada? Como está a correr?
Bem, neste momento está a crescer. Em 2022, apesar da crise da covid-19 e da subsequente crise económica, crescemos mais de 2% e vemos uma tendência semelhante para este ano. Como o resto dos países da região, há um efeito da inflação, mas em El Salvador é de alguma forma estável por duas razões: uma porque, embora tenhamos Bitcoin como moeda legal, a nossa moeda legal também é o dólar, então não temos esse fluxo de taxa de câmbio, e a outra é que o presidente tomou medidas no tempo com alguns subsídios, por exemplo, o apoio com a cesta básica de bens etc. É importante dizer que devido ao mesmo modelo de segurança implementado temos tido picos importantes na nossa economia, o ano passado foi o ano em que recebemos mais turistas internacionais na nossa história, o ano passado foi o ano em que mais exportámos para a União Europeia desde a implementação do acordo de associação, portanto estamos extremamente orgulhosos disso porque há de facto uma transformação no país.

Quando pensamos em El Salvador, pensamos muito na relação com os Estados Unidos, mas também pensamos na potencial proximidade da América Latina com a Europa. É possível que El Salvador procure em simultâneo tanto fortalecer a relação com os Estados Unidos como apostar numa nova relação com a Europa?
Definitivamente, temos uma política externa de total abertura, hoje estamos muito abertos, abrimos mais embaixadas na União Europeia, o caso desta embaixada aqui em Portugal que abrimos este ano, abrimos embaixada na Noruega. Também na Ásia, em Singapura e no Vietname, abrimos a nossa primeira embaixada em África durante esta administração em Marrocos, abrimos em Turkiye e estamos a planear abrir também na Arábia Saudita. Isto aproxima-nos da União Europeia, que é precisamente a razão pela qual estou aqui, durante os dois anos em que fui vice-ministra, esta é a terceira vez que venho à Europa, porque queremos fazer esta aproximação, especialmente na vertente económica, e o ministro dos Negócios Estrangeiros participou na Cimeira CELAC - União Europeia, onde chegámos a um acordo com eles para o financiamento de um projeto importante, o comboio que nos ligará à Guatemala e, mais tarde, ao comboio Maia no México. A relação com os Estados Unidos também é importante, não negamos que temos lá a maior parte da nossa diáspora, mais de dois milhões de salvadorenhos, que é também o nosso principal parceiro comercial, mas tem de se basear no respeito pelas nossas próprias decisões internas. Foi por isso que voltámos a abordar o Governo, a nomeação do embaixador em El Salvador e agora a sua concretização ajudou muito a aproximar as relações e gostaria de dar talvez dois exemplos claros: um é que a ministra de Relações Exteriores se reuniu há um mês e meio com o secretário Blinken em Washington e falaram sobre a relação. Sentimos que isso acelerou muitas coisas e também costumávamos ter o Corpo de Paz (Peace Corps), que estava em El Salvador, que nos apoiava em algumas áreas, mas infelizmente devido à mesma situação de insegurança em 2016 decidiu fechar e sair. Há dois dias, a ministra de Relações Exteriores assinou um memorando de entendimento com o embaixador e a equipa do Corpo da Paz em San Salvador para que regressem, e isso foi agora formalizado. Com este facto, os Estados Unidos reconhecem que El Salvador percorreu um longo caminho.

El Salvador vai organizar o próximo concurso Miss Universo. A ideia é promover a imagem do país?
Totalmente. A verdade é que o Presidente projetou muito para o país. O Miss Universo é muito importante para nós, estamos a preparar-nos como Governo, juntamente com o setor privado, para fazer disso um concurso de alto nível, o local já foi escolhido, será no estádio nacional de El Salvador, que foi renovado, porque este ano também recebemos os Jogos Centro-Americanos e das Caraíbas e vários campeonatos mundiais de surf nos últimos três anos. Portanto, está planeado. A implementação da Bitcoin, por si só, independentemente de haver pessoas que concordem ou não, colocou-nos no mapa. Na Europa, especificamente, El Salvador não existia anteriormente para as pessoas ou era visto de forma negativa. Hoje vemos uma perspetiva positiva de outros países em relação a El Salvador e o Miss Universo vai definitivamente posicionar-nos. Já o está a fazer, mas durante o concurso sei que nos vai posicionar.

leonidio.ferreira@dn.pt

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