Já chega!
Neste século, já com 23 anos, nada de substancial ocorreu no SNS. A estrutura manteve-se praticamente constante, os serviços a funcionar da mesma maneira, os doentes a penar, talvez de forma agravada, os problemas de sempre. As exceções foram a rede de cuidados continuados (2006),que funciona com deficiências, as PPP (2010) que foram abandonadas e, mais recentemente, a hospitalização domiciliária (2018) que está no início, mas já com resultados animadores.
Sucedem-se os governos e os ministros, repetem-se os diagnósticos, muitos dos quais consensuais, e nada acontece. Gasta-se cada vez mais dinheiro, incorporam-se cada vez mais profissionais, modernizam-se instalações e equipamentos aqui e ali, mas os resultados para a vida das pessoas parecem correr para o precipício. Falta de médicos de família, Urgências sempre a aumentar e algumas a fechar, listas de espera intermináveis, consultas sempre atrasadas, generalizada falta de resposta, falhas intoleráveis no atendimento.
Manda a verdade dizer que tudo isto se vem sucedendo em paralelo com uma evolução científica e tecnológica que também tem sido incorporada nos serviços públicos (que, diga-se, continuam, de longe, a liderar a complexidade do que se faz na saúde) com ganhos substanciais em indicadores sociodemográficos que retratam bem o aumento da longevidade, a cura e controlo de muitas doenças outrora fatais, a descoberta de tratamentos eficazes para muitas doenças até aqui desconhecidas. São as inabaláveis vantagens do SNS!
A situação parece ter atingido agora um pico incontrolável de degradação, com o encerramento desordenado e sem consenso de Serviços de Urgência, falhas que se sucedem em domínios variados do atendimento, pressão da comunicação social e queixas constantes dos doentes e familiares.
Parece haver uma crónica impotência na governação do SNS para atacar os problemas de fundo e reencontrar o caminho de um serviço público universal, confiável e de qualidade. Precisamos de medidas concretas de rutura com o percurso pantanoso que temos percorrido nas últimas décadas. Não é com medidas pontuais ou de conjuntura que se resolvem os problemas estruturais. Não é nas Urgências que residem os problemas principais do SNS. Estas são apenas o espelho e o ponto de chegada de uma série de problemas que estão a montante. E não vale a pena investirmos tempo, dinheiro e recursos humanos nas Urgências sem tratar dos alicerces do SNS. Senão vejamos:
1. Os modelos de trabalho no SNS já mostraram as suas fragilidades há muitos anos:
a) O trabalho médico é feito, muitas vezes, em acumulação com o setor privado, quer pelos médicos de família quer pelos médicos hospitalares, com graves problemas de eficiência e de produtividade. Rentabilizar o volume e qualidade dos médicos, passa por criar um modelo remuneratório com duas componentes: uma fixa, de valor moderado, outra variável, que incentive os profissionais a cumprir objetivos necessários para os cidadãos: reduzir ou eliminar listas de espera, tratar mais doentes, reduzir taxas de infeção hospitalar, complicações e dias de internamento, melhorar os resultados. Não se trata só de pagar mais, é também preciso cumprir metas de produção e de qualidade;
b) As USF (Unidades de Saúde Familiares), embora tivessem representado um pequeno avanço quando foram criadas, são hoje claramente parte do problema, necessitando de uma reforma radical que atualize inventários de profissionais e utentes, proceda a um alargamento dos horários de trabalho e crie condições para o incremento massivo e urgente da visita médica domiciliária. Isto faz-se com incentivos dirigidos ao que precisamos e não ao que possa ter mais interesse ou ser mais simpático. A aparente anomia dos cuidados de saúde primários conduz a mais procura de Serviços de Urgência (cerca de 7 milhões de utentes por ano, aproximadamente 20 mil observações por dia) quando devia ser um dos pilares de uma reforma séria e consistente;
c) Os hospitais vivem afogados nos serviços de Urgência: 40% do horário normal de trabalho dos seus médicos com menos de 50 anos é feito nesses serviços; a contratação de mais médicos, à tarefa, exclusivamente para esses serviços, representa já mais de 100 milhões de euros por ano, o equivalente a todo o orçamento de um médio hospital nacional; os internamentos via Urgência representam o pleno dos internamentos nas áreas de medicina interna e especialidades médicas, como se fosse impossível programar a admissão de todos estes doentes. As consequências deste modelo são catastróficas para o trabalho clínico programado e para a organização dos serviços, que rapidamente se podem ver sobrelotados e/ou com doentes já internados nos Serviços de Observações há vários dias, numa acumulação explosiva de casos e de patologias e em condições degradantes;
d) Os hospitais têm cronicamente pouca autonomia gestionária, sem objetivos que os responsabilizem e orçamentos a condizer. A passagem de ano com deficits acumulados é, portanto, uma realidade que se vai repetindo ano após ano, desresponsabilizando gestores e responsáveis clínicos sobre o volume de doentes que tratam e os custos em que incorrem, quer na gestão operacional quer nos investimentos que realizam. O contraste entre este modelo e o que foi implementado nas PPP é elucidativo, porque aqui tudo estava bem definido e se não houvesse cumprimento havia penalizações para a entidade gestora. Havia, assim, uma clara partilha de risco que a todos responsabilizava;
e) A integração de cuidados, sobretudo entre médicos de família e médicos hospitalares, apesar de vários estudos e propostas ao longo dos últimos anos, não se vislumbra na prática médica. Os doentes não são devidamente referenciados e as suas patologias discutidas entre médicos de níveis de intervenção diferentes. Os médicos de família "atiram" muitos doentes para consulta de especialidade hospitalar sem critério, assoberbando o trabalho dos hospitais com casuística indevida e que muitas vezes é devolvida à procedência. No meio estão os doentes, vítimas destes percursos em ziguezague, desumanos e dilatórios. A criação de novas ULS (unidades locais de saúde) pode contribuir para alguma melhoria neste particular, mas será mandatório avaliar o desempenho dessas unidades e fortalecer os compromissos de integração. A introdução de alterações na superestrutura de resposta não faz, por si só, milagres. Importa mudar radicalmente o modelo de funcionamento das ULS.
2. Por outro lado, o envelhecimento exige novos modelos clínicos de resposta, diferentes e complementares do que sucede para a doença aguda. Mais proximidade, acompanhamento e monitorização permanente, prevenção das agudizações e visão integrada do doente no seu quadro multipatológico, são exigências dos serviços de saúde modernos face ao doente mais idoso. Criámos em 2006 os cuidados continuados integrados, como um terceiro pilar do SNS. Apesar da importância estratégica que vem desempenhando não tem sido suficiente: poucas camas e, sobretudo, pouco eficaz em matéria de acompanhamento e reabilitação. Esperar-se-ia que os cuidados continuados fossem adquirindo um maior alcance na resposta a doentes no domicílio ou carentes de apoio nas atividades da vida diária. Centrar a atenção exclusivamente nas camas de curta, média e longa duração é redutor nos objetivos pretendidos. O prolongamento deste apoio para além do internamento seria crucial, para evitar a institucionalização de muitos doentes em lares ou residências para idosos. Por outro lado, o modelo de financiamento destas instituições deveria ser profundamente alterado, abandonando pagamentos por diária e substituindo-os por pagamentos por episódio e com medição dos resultados obtidos. O potencial de recuperação do doente conseguido por cada instituição deveria merecer um pagamento mais diferenciado e não apenas a ocupação das camas.
Mais recentemente assistimos a uma importante inovação nos hospitais. Iniciou-se com o Hospital Garcia de Orta, em Almada, e está paulatinamente a alargar-se a outros hospitais do SNS. Trata-se da hospitalização domiciliária, uma nova forma de internar doentes, não nos hospitais mas na sua própria casa. Os ganhos têm sido assinaláveis, com a satisfação generalizada de doentes e famílias. Há, apesar de tudo, inovações positivas.
3. É neste cenário que vimos assistindo, sem surpresa, ao crescimento da prestação privada, em ambulatório, e de forma acentuada nos últimos anos, no internamento hospitalar. As despesas privadas de saúde em Portugal correspondem hoje a, aproximadamente, 34% das despesas totais do setor, o que podemos considerar atípico no contexto europeu, em que apenas 20% das despesas da saúde são out-of-pocket. Isto acontece por incapacidade de resposta do SNS, que leva cada vez mais segmentos da classe média a recorrer ao privado. Os seguros comerciais, mas sobretudo os subsistemas públicos, são o grande motor de desenvolvimento do setor privado. São, em grande parte, os sindicatos da função pública e o Estado a alimentar o setor privado, o que não deixa de ser irónico.
4. Para terminar, exemplifico com algumas medidas concretas o que poderia já ser feito no sentido do que deixo exposto:
a) Todos os cidadãos com mais de 80 anos deveriam ser objeto de uma primeira visita médica no domicílio (preferencialmente do seu médico de família), sempre que a família ou o próprio considerem ser uma situação urgente. Isso faria diminuir drasticamente a procura de Urgência e permitiria orientar com mais critério os próximos passos do doente ou mesmo resolver de imediato a situação. Muitos países europeus utilizam já com sucesso esta prática e têm muito poucas visitas nos Serviços de Urgência hospitalar. O desenvolvimento de experiências-piloto um pouco por todo o país poderia começar já;
b) Os hospitais, em articulação com os médicos de família, deveriam programar os seus internamentos em serviços médicos, evitando a passagem obrigatória dos doentes pela Urgência. A avaliação do doente pelo seu médico de família com base em protocolos de severidade, permitiria, após breve diálogo com um especialista hospitalar e eventual envio de resultados de exames, definir dia e hora de internamento e dispensar, com vantagens para todos, a passagem pela Urgência;
c) A realização de trabalho médico de Urgência deveria ser alargada para os 60 anos, ganhando-se, assim, o concurso dos médicos mais bem preparados. Os horários de serviço médico de Urgência deveriam ser obrigatoriamente reduzidos para turnos de 8 horas, acabando com a situação absurda e perigosa de horários de 12, 24 e até 48 horas de trabalho consecutivo! É isso que já acontece com os enfermeiros e outros profissionais e seria fator de redução de equipas médicas em espelho, que duplicam a despesa em horas de trabalho sem qualquer utilidade.
Já chega de diagnósticos, de diálogo, de taticismo e de inação. Os governos fizeram-se para governar e tomar as decisões que se impõem. Mesmo que difíceis. E com maioria absoluta... Haja coragem!
Administrador hospitalar e antigo secretário de Estado da Saúde, entre 2015 e 2017