Já basta de destruírem a nossa arquitectura industrial

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Houve um tempo em que a arquitectura industrial era física e tangível, feita com o propósito de erigir edifícios perenes, que albergassem máquinas e homens que as operassem, e em que a linha de montagem desembocava em algo palpável e evidente, em termos físicos e do seu subsequente rendimento, mais-valia de uma nação.

Compreensível, a preocupação dos patrões de então, entre-séculos XIX e XX, com a fixação dos seus operários o mais perto possível da labuta, por isso o "boom" de pátios e vilas operárias, de agremiações e locais de recreio e convívio, mas também de ensino, que foram surgindo um pouco por todas as cidades.

Décadas depois, a fábrica passou a parte integrante do planeamento urbanístico. Ao mesmo tempo que os novos patrões mandavam construir colónias de férias para os seus trabalhadores e ofereciam programas de formação técnica e apoios à família, os desenhadores das cidades gizavam planos e loteamentos, levando, compreensivelmente, a indústria para longe o mais possível dos bairros residenciais e das zonas históricas.

Hoje, a designada quarta revolução industrial (a Indústria 4.0) é-o essencialmente pela "arquitectura" virtual, que se desenvolve já não no laboratório ou no estirador, mas algures entre a cripto-moeda e o holograma, tudo accionado à distância de um clique, sem necessidade de teste de ensaio nem prova de resistência; uma indústria maioritariamente numérica.

É nesse paradigma que Lisboa tem vindo a mergulhar nos últimos tempos, inebriada e deslumbrada com um cosmopolitismo de sci-fi de saldo, que lhe acenam e na perspectiva do cifrão fácil, que dará milhões, qual Tio Patinhas, tudo acompanhado por muita selfie e onirismos com Deckard, Rachael ou Roy -- em termos de F/X, perdão, efeitos especiais, Scott baniu Lang e Metropolis, tal como os Tempos Modernos de Chaplin, da cabeça dos jovens actores da nova ordem industrial.

Curiosamente, ou não, em Lisboa, o novo mundo de summits e hubs desenha-se no eixo industrial da avenida d"O Navegador, o impulsionador das nossas gestas, por sinal também fantasiosas à altura. Aliás, na mesma Av. Infante D. Henrique nascida do planeamento de De Gröer.

Ou seja, seria, pois, lógico que novos promotores privados e públicos tivessem um lampejo de humildade e memória, e tudo fizessem para fazer sobrepor em termos espaciais a nova ordem com a velha. Mas não é isso que está a acontecer, uma vez que grande parte do edificado que ainda resta dos anos 50, irá ser destruído integralmente, se nada acontecer em contrário.

Fará sentido promover-se hoje a demolição dos edifícios das fábricas dos anos 40 e 50, que ainda restam, como se fez há 30-40 anos, ainda que eles estejam devolutos e vandalizados?

Quando se pode aproveitá-los (ex. os edifícios em tijolo da antiga SACOR, os complexos gigantescos da Fábrica Barros, da autoria de Cottinelli Telmo, com a célebre pala, percursora da do Pavilhão de Portugal; e a vizinha do lado, a antiga Crown & Cork Seal, do eng. Conde de Paiva, os gasómetros da Matinha) para neles albergar os novos discípulos de Schumpeter?

Cabe à Câmara Municipal de Lisboa zelar pela salvaguarda do território que lhe está confiado e pelo património respectivo; no caso presente, tudo fazer para que da arquitectura industrial não fiquemos reduzidos a uma arqueologia industrial, quando não a meras fotos de arquivo, geralmente de embasbacar - sim, houve um tempo em que Lisboa ombreou com a Europa industrializada, em termos de estruturas fabris, máquinas, mão-de-obra e produto final.

E aí deviam entrar os promotores privados. Que deviam fazer benchmarking dos bons exemplos de reconversão já existentes, como o da antiga UTIC (agora empresa de formação profissional), da Kores junto à Gare do Oriente, da ainda operacional Bruno Janz (Herdeiros), da imensa garagem-oficina-stand da Baptista Russo & Irmão (que virou Decathlon), ou o da própria Laneiro (embora seja propriedade da CML).

Ou seja, é possível aproveitar os velhos edifícios e dar-lhes vida nova, sem destruir as pré-existências. É possível à "nova modernidade" fazer bom uso do que resta da anterior.

Porque até os sonhos e os unicórnios precisam de estábulo, manjedoura e, eventualmente, picadeiro.

Presidente Fórum Cidadania Lx - Associação
O autor escreve segundo a antiga ortografia

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