J. H. Andresen. A família, a empresa e o tempo (1841-1942)
Na cidade do Porto da minha infância existia o eléctrico n.º 3, carreira da Praça da Liberdade a Lordelo do Ouro e volta, cujo condutor, chegando à paragem frente ao actual Jardim Botânico/Galeria da Biodiversidade, anunciava, em voz sonante: "Andres!".
Sim, o condutor! De facto, quem conduzia era o guarda-freio, e o condutor era quem circulava na coxia e nas plataformas vendendo e "picando" os bilhetes dos passageiros, e puxava um cordão de cabedal duas vezes, para indicar ao genuíno "condutor" que o transporte podia seguir caminho. E os "Andres", desde Jan Hinrich Andresen, um marujo dinamarquês com extraordinário talento, e até hoje, seguiram um fascinante caminho.
Com esses anúncios do eléctrico, e outros contos mais ou menos fantasiosos, foi-se consolidando o imaginário sobre o personagem JH e sobre muita da sua descendência. O meu, então, foi crescendo no universo do fantástico, não só com essa aparente importância atribuída ao nome Andresen pelo condutor do 3, mas também pela voz segredada da Sophia, recitando uma cúmplice "Nau Catrineta" e contando lendas sobre a genial figura do JH Andresen, nosso Bisavô comum. Fazia-o até talvez aos 6 anos do petiz, 22 mais novo do que ela, na Rua António Cardoso e na casinha pousada na orla das ondas alterosas do mar da Praia da Granja.
Apesar de a Casa Andresen na Rua do Campo Alegre já ter sido deixada há muito pela Família e vendida ao Estado em 1949, ali a 200 metros, o n.º 222 da Rua António Cardoso, onde eu nascera em 1941, continuava próximo física e animicamente de muitos Andresen, em que predominavam bastas mulheres carinhosas, muito afectuosas, e que me deram mimo durante anos.
Com o passar do tempo, e com as distâncias, as lendas e a memória daquele que nunca foi designado por Jan Hinrich, mas sempre por Jota Agá, foram-se-me diluindo. Mas as réplicas em terracota do magnífico busto de mármore existente ao cimo da escadaria do Palácio da Bolsa no Porto, da autoria do prestigiado escultor António Teixeira Lopes, enxameavam as casas familiares. As "suíças", ou patilhas, as suas feições poderosas e a qualidade escultórica da peça original, muito bem reproduzida nas réplicas, impunham o personagem e não o deixavam esquecer. De tal forma o fabuloso Jan Hinrich Andresen ficou envolvido no meu "fantástico" e no meu imaginário que nem a névoa caída sobre ele com o passar do tempo o fez esquecer.
Num leilão que ocorreu em Lisboa, creio que em 2014, apareceu um desses bonitos bustos em terracota patinada, assinado e datado de 1900, por Soares dos Reis. Adquiri-o por um preço irrisório, que não subiu mais talvez porque a leiloeira o tivesse identificado apenas como "busto masculino". E, apesar dos seus diminutos 31 centímetros, passou a figurar, de forma relevante, em minha casa.
Em 2019 fui alertado para outro leilão a decorrer no Porto, em que ia à praça um misterioso e belíssimo busto em mármore de JH, da autoria do escultor Simões de Almeida Júnior, e cujo historial não se conseguiu identificar.
Dado o seu tamanho, 70 cm de altura e cerca de 120 quilos de peso, não me interessou. No entanto, três dias após terminados os lances, telefonei à leiloeira para saber por quanto tinha sido licitado. Como não teve ofertas, e o preço ficara acessível, ocorreu-me adquiri-lo para o oferecer à Universidade do Porto, proprietária da Casa Andresen/Jardim Botânico/Galeria da Biodiversidade, que, para minha grande alegria, aceitou, e colocou a escultura no Átrio Central do edifício, em evidência, deixando bem visível a ligação do nome Andresen à casa e ao jardim.
Devo agradecer à Reitoria da Universidade do Porto, e em particular à Senhora Professora Doutora Maria de Fátima Vieira, Vice-Reitora, que diligenciou de forma exemplar para que o desiderato que me animava fosse satisfeito.
Assim ficou revigorada a identidade Andresen naquele parque belíssimo, e na casa que, com tanto dinamismo, hoje serve a cultura da Invicta.
Para coroar tal êxito, perguntei ao prestigiado historiador Gaspar Martins Pereira, Professor Catedrático da Universidade do Porto, se estaria interessado em dar verdade histórica aos factos que originaram a lenda existente em torno de Jan Hinrich Andresen, alimentada pelas histórias dos filhos, netos e bisnetos, mas sobretudo pela escrita magistral de Sophia de Mello Breyner Andresen, e também pelas vivas recordações do "Campo Alegre" deixadas no português iluminado do Andresen Ruben A., em O Mundo à Minha Procura e outros textos.
Gaspar Martins Pereira não só aceitou com entusiasmo o desafio, como decidiu levá-lo a cabo por sua conta e risco. Dado eu ter sido o motor de arranque do projecto, acabou por me sugerir a escrita do Prefácio deste livro. Foi um desafio que me deixou não só muito honrado, mas também com indisfarçável orgulho por este testemunho poder deixar acentuado o elemento Andresen na alma que comigo levo.
As influências e a educação de que fui destinatário, tanto pelo lado paterno, van Zeller, como pelo materno, com a forte matriz dos genes Andresen, foram sólidas e incontestavelmente decisivas para os êxitos que fui conseguindo ao longo de uma já longa vida.
Mas a cultura Andresen foi a que tocou mais fundo neste bisneto de JH.
Estou em crer que aconteceu devido sobretudo à qualidade do vasto entorno feminino que me rodeou desde que nasci na Rua António Cardoso em 1941, mulheres em geral cultas, inteligentes, multilingues e muito carinhosas. A começar pela minha Mãe Alzira, que todos adoravam e conheciam por Zicas, que semeava amor por todos sem nada esperar em troca, uma mater familiae exemplar. Quando obteve o primeiro bilhete de identidade, foi oficialmente designada no documento por analfabeta, apesar de dominar com fluência escrita e falada, além do português, o inglês, o alemão e o francês, e tocar piano de forma talentosa, dom também possuído por suas quatro irmãs. A mais velha, Maria Amélia, casada com Pedro de Brion, um engenheiro doutorado na Suíça, foi não só minha Madrinha mas também me tratou como seu genuíno filho na casa da Rua Garcia de Orta em Lisboa, e na Quinta da Palma, na Eugaria, Colares, durante a década de 60, nos anos de licenciatura na Faculdade de Direito da capital. Henrique, o único e verdadeiro, já deixara o lar paterno para casar, sempre me tendo tratado como um irmão. E também pelas outras manas fui mimado.
As Primas de minha Mãe não ficavam atrás. Theodora Andresen (de Abreu), pintora de grande mérito, que vivia quase em frente a nossa casa da Rua António Cardoso, foi quem me guiou, ainda a vagir e até aos 10 anos, nos passeios pelos frondosos jardins do que era conhecido na Família por Casa do Campo Alegre. Maria Mello Breyner e João Andresen, ele Primo Direito da Zicas, nossos vizinhos imediatos, encantavam-me por me deixarem manusear, até à exaustão, o peculiar manípulo de velocidades de um Citroën "arrastadeira", mas menos quando ele exibia orgulhosamente os troféus de caça (perdizes e galinholas, sobretudo), cujos corpos inertes e com sinais de sangue me deixavam acabrunhado. Mas depois lá vinha a Sophia segredar-me a "Nau Catrineta", e também o Gustavo, seu irmão, que igualmente me mimava, e com quem viria a criar uma sólida amizade nos anos 60 e 70.
Outras primas da incomparável Zicas como, por exemplo, a Olga Andresen (Almeida) e a Maria Joana Andresen (Thessen) e a Dora Andresen Chambers (Caton) também me apaparicavam, tal como a Roseira Andresen Guimarães (Mitranda), e uma Tia Avó, Inês Andresen (da Costa), que visitei algumas vezes na belíssima Quinta dos Cedros, em Sintra ( hoje hotel), e com cuja bisneta, Vera Nobre da Costa, uma geração abaixo da minha, eu viria a casar. E outras que seria enfadonho enumerar, nomeadamente as belas descendências de Tias e Tios, Primos e Primas, com quem sempre mantive estreitos laços.
Os talentos que Jota Agá legou proliferaram, e não pararam de crescer até hoje, e em diversos ramos de actividade, nomeadamente na literatura, na arquitectura, na diplomacia, na música, no jornalismo, na gestão, na história, no culto da paisagem. Todos esses génios tocaram-me de perto uma vida inteira.
As múltiplas disputas familiares nunca me suscitaram qualquer interesse.
Tão pouco isso se justificava devido às diferenças de idades entre os contrincantes e o benjamim, que assim sempre foi tratado por uma multidão de Andresens.
Conheci por alto algumas dessas questões. Por desinteresse, nunca nelas entrei nem as entendi. Nunca me senti longe de partes que tiveram grandes diferenças, incluindo as da minha geração, com todos sempre mantendo relações cordiais e de amizade, sem nunca qualquer tema conflituoso ser levantado.
E nestas circunstâncias é mais simples entender a razão pela qual Jan Hinrich e o ramo Andresen sempre exerceu enorme fascínio e influência neste pouco relevante personagem, que nunca deixou de se interrogar sobre tantas histórias contadas e recontadas.
E assim, ao fim de dois anos de aturado trabalho do autor, surge este magnífico livro.
Trata-se do rigoroso reconhecimento histórico da identidade do dinamarquês Jan Hinrich Andresen, da sua descendência imediata, alguma da subsequente, da sua astral subida ao sucesso empresarial, à fortuna, à consolidação, e à posterior queda desse império, tudo em cerca de 100 anos. E também do perene legado económico, cultural e social com que JH enriqueceu a Cidade do Porto e Portugal.
Gaspar Martins Pereira, com pergaminhos reconhecidos como historiador, tem uma escrita leve, fácil, corrida, um português de mestre que traz interesse acrescido a toda a sua vasta e magnífica obra, e a este livro em particular. Foram incansáveis as consultas de centenas de documentos notariais, paroquiais, judiciais, etc., em diversos arquivos (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Arquivo Distrital do Porto, Arquivo Municipal do Porto, Arquivo Sophia de Mello Breyner Andresen, Arquivo da Fundação Mário Soares, Arquivo da Igreja Anglicana de St. James, Arquivo Nacional da Dinamarca, etc., etc.), bem como em colecções particulares, sobretudo de descendentes de J. H. Andresen.
O cuidado e rigor do hercúleo e obstinado trabalho levado a cabo foi complementado pela leitura de numerosíssimos textos de um sem fim de jornais portugueses, brasileiros, ingleses, franceses, espanhóis e americanos. Merece a pena ir ver as fontes identificadas nas últimas páginas do livro, para avaliar o esforço desta investigação histórica.
Foi determinante para o historiador o apoio precioso de Paula Montes Leal, licenciada em História, na variante Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com uma Pós-Graduação em Ciências Documentais - Arquivo (Curso de Especialização em Ciências Documentais), da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e um Mestrado na mesma especialidade na Universidade de Évora. Ela dedicou, na incomensurável visita a documentação muito dispersa e complexa, uma cuidadosa busca do detalhe mais remoto, assim como enorme cuidado na organização e sistematização da informação recolhida, de grande valor para Gaspar Martins Pereira.
A versão final do livro foi dada a apreciar aos numerosos membros da Família Andresen abordados pelo autor, a maioria dos quais cedeu documentos, fotografias e importantes testemunhos escritos e verbais, revelando ângulos e pormenores inéditos de grande interesse para o investigador.
Este livro poderia possivelmente ter o dobro das páginas, tal a quantidade de factos com que o Professor Gaspar Martins Pereira se confrontou. Mas, fazendo jus ao dom da síntese que possui, acaba por abordar o essencial que, já por si, é abundante. Por outro lado, o leitor é poupado a temas mais delicados que poderiam ferir a susceptibilidade de alguns. Aliás, aqui se revela o notável talento do autor ao narrar apenas factos documentados, ausentes de qualquer tipo de especulação.
O sangue Andresen que me corre nas veias fica gratíssimo ao trabalho de investigação realizado, pela qualidade científica e literária com que Gaspar Martins Pereira vem brindar os leitores desta obra, e pela importância que ela tem para os anais históricos da cidade do Porto e de Portugal.
E, por tudo o que aqui fica escrito, levanto um cálice de Vinho do Porto Andresen em homenagem a quantos no livro são referidos, e também a Carlos e Manuela Flores dos Santos, líderes da actual empresa J. H. Andresen que, com a ajuda do reputado enólogo Álvaro van Zeller, levam néctares de excepção ao mundo inteiro com o nome do genial JH.
J. H. Andresen - a família, a empresa e o tempo (1841-1942)
Gaspar Martins Pereira
Edições Afrontamento
390 páginas
21,60 euros