IVG: Ordem dos Médicos e PGR insistem em normas que "humilham as mulheres"
"Qual a natureza da declaração de objeção [de consciência]?"
"A declaração é reservada e de natureza pessoal."
"A declaração de objeção pode ser objeto de registo, publicação ou servir para instruir alguma decisão administrativa?"
"O nº 5 do artigo 6º da Lei 16/2007 refere que em caso algum pode ser objeto de registo ou publicação ou fundamento para qualquer decisão administrativa."
Estas perguntas e respostas fazem parte de um "parecer jurídico" constante no site da Ordem dos Médicos, datado de 23 de abril de 2023, e que se apresenta como uma "súmula de perguntas frequentes relativas a Objeção de Consciência em IVG [interrupção voluntária da gravidez]". Ambas as respostas dadas às perguntas citadas referem uma norma - o número 5 do artigo 6º da Lei 16/2007 - que não existe desde 2016.
De resto, a referida norma - "A declaração de objeção de consciência tem caráter reservado, é de natureza pessoal, e em caso algum pode ser objeto de registo ou publicação ou fundamento para qualquer decisão administrativa" - apenas vigorou quatro meses.
Foi introduzida na lei em causa (a chamada "lei do aborto", que em 2007, na sequência de um referendo, legalizou a interrupção de gravidez até às 10 semanas por vontade exclusiva da mulher) em julho de 2015, no último dia da XII legislatura, pela maioria PSD/CDS-PP, através da Lei 136/2015, e revogada pela Lei 3/2016, de 29 de fevereiro, aprovada pela maioria PS/BE/PCP/Verdes que resultou das eleições de 4 de outubro, .
Além da norma referida sobre a natureza da objeção de consciência e a interdição de que esta fosse objeto de registo, as alterações efetuadas pelo PSD e CDS-PP, que incidiam nos artigos 2º e 6º da lei de 2007, incluíam ainda a possibilidade (expressamente interditada em 2007) de os objetores de consciência participarem nas consultas de IVG - ou seja, na chamada "consulta prévia", na qual é dada toda a informação necessária sobre o procedimento - e no acompanhamento que pudesse existir durante o período de reflexão de no mínimo três dias que a lei impõe às mulheres entre a consulta prévia e o procedimento de interrupção de gravidez.
PSD e CDS-PP decretavam também a "obrigatoriedade" de que durante o período de reflexão as mulheres tivessem "acompanhamento psicológico" e "acompanhamento por técnico de serviço social". Noutro diploma, aprovado no mesmo dia, impunham o pagamento de taxa moderadora sobre a IVG, até aí isenta.
Logo que o parlamento eleito nas legislativas de 4 de outubro reabriu, deram entrada vários projetos de lei para revogar as alterações efetuadas pelo PSD e CDS-PP. Os títulos eram elucidativos: "Restabelece o respeito pela dignidade das mulheres portuguesas e a salvaguarda da sua saúde sexual e reprodutiva" (PS); "Revoga as leis que humilham mulheres que recorrem à IVG" (BE); "Elimina mecanismos de coação e condicionamento sobre as mulheres no acesso à IVG" (PCP). Em votação unânime, a 20 de novembro, a nova maioria (mais o voto da social-democrata Paula Teixeira da Cruz) aprovou a "repristinação", ou seja a reposição, dos artigos 2º e 6º originais da lei de 2007.
Sobre essa reposição não pode restar qualquer dúvida: a Lei 3/2016, de 29 de fevereiro (que seria, a 25 de janeiro de 2016, alvo de um veto presidencial de Cavaco Silva, tendo o parlamento voltado a aprová-la, sem alterações, a 10 de fevereiro) estabelece, no seu artigo 3º, "repristinação", alínea b: "São repristinados: (...) os artigos 2.º e 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, na redação imediatamente anterior à da Lei n.º 136/2015, de 7 de setembro".
Ora mais de sete anos depois da entrada em vigor da referida "repristinação" a Ordem dos Médicos, no seu parecer jurídico sobre objeção de consciência, embora dando mostras de conhecer a Lei 3/2016, de 29 de fevereiro, e o facto de esta ter revogado a Lei 136/2015, parece considerar que afinal a lei de 2015 não foi totalmente revogada.
É o que resulta desta passagem: "A interpretação que fazemos da vontade do legislador designadamente das alterações produzidas pela Lei 136/2015, de 07.09 à versão inicial da Lei 16/2007 e aquelas que posteriormente resultaram da Lei 3/2016, de 29.02 de revogação da Lei 136/2015 vai no sentido de se entender que o médico objetor não deve intervir no processo de decisão da grávida quer nos cuidados de saúde primários, quer nos cuidados hospitalares."
De facto, tendo a Lei 3/2016 repristinado o artigo 6º da Lei 16/2007, na qual se lê, no número 2, "Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objeção de consciência relativamente a qualquer dos atos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem participar na consulta (...) ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de reflexão", não parece haver qualquer necessidade de "interpretação" da "vontade do legislador": esta não podia ser mais clara.
Por outro lado, como já referido, o artigo 6º na lei 16/2007 tem apenas quatro números, e o último (4), estatui: "A objeção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objetor, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao diretor clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez."
Nada mais consta no artigo 6º sobre a declaração em causa. De resto, para que serviria impor aos objetores de consciência que assim se declarem por escrito aos respetivos superiores hierárquicos, se tal não pudesse ser objeto de registo e de "decisões administrativas" (desde logo o impedimento, determinado na lei, de que objetores possam participar nas consultas de IVG, ou a contratação, como tem sucedido, de médicos especificamente para efetuar IVG quando num serviço todos se declaram objetores)?
Que as declarações, obrigatórias por lei, servem para, precisamente, ser registadas e para decisões administrativas conclui-se do facto de que quer a Entidade Reguladora da Saúde quer a Inspeção Geral das Atividades em Saúde, nas suas recentes auditorias sobre interrupção de gravidez no SNS, terem requerido aos hospitais e centros de saúde que lhes comunicassem tais registos, de modo a poderem contabilizar o número de profissionais objetores.
Curiosamente, porém, a Ordem dos Médicos, cujo Código Deontológico obrigava, no artigo 37º, os médicos a comunicar-lhe a respetiva declaração de objeção de consciência ("O exercício da objeção de consciência deverá ser comunicado à Ordem, em documento registado"), alterou essa norma a 20 de maio 2016, aquando da aprovação do novo Estatuto Deontológico.
Agora, no artigo 12º ("Objeção de consciência") do referido Estatuto, lê-se: "A objeção de consciência é manifestada perante situações concretas em documento que pode ser registado na Ordem, assinado pelo médico objetor e comunicado ao diretor clínico do estabelecimento de saúde, devendo a sua decisão ser comunicada ao doente, ou a quem no seu lugar prestar o consentimento, em tempo útil." Parece concluir-se desta redação que a OM considera opcional a comunicação, quer a si quer à direção clínica do estabelecimento - o que, neste último caso, contraria frontalmente a lei em vigor.
Coincidência ou não, a Entidade Reguladora da Saúde concluiu na sua auditoria (publicada em setembro) que a maioria dos hospitais e centros de saúde não possuíam um registo atualizado dos objetores, ou seja, não estavam a cumprir a lei.
O erro da Ordem dos Médicos - que publicou o seu "parecer jurídico" um mês depois de o bastonário, Carlos Cortes, em reação a perguntas do DN sobre objeção de consciência, ter assegurado que estava a ser preparado um "documento clarificador" (Cortes confirmou ao DN que o dito documento é o "parecer" de que trata este artigo) - poderá estar relacionado com o facto de no site da Procuradoria-Geral da República a Lei 16/2007 surgir na redação que lhe foi dada pelo diploma revogado.
No cabeçalho da página respeitante a esta lei, lê-se "Interrupção voluntária da gravidez (versão atualizada)", e "2ª versão - a mais recente (Lei nº 136/2015, de 7/9/2015)".
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Na verdade, nada na página foi "repristinado".
Ainda constam no artigo 2º as mais que revogadas "obrigatoriedade de acompanhamento psicológico" e de "de acompanhamento por técnico de serviço social" durante o período de reflexão; no artigo 6º inexiste a proibição do número 2, que está em vigor (e que fora eliminada pelo PSD e CDS-PP) - lê-se apenas "revogado" - de que os objetores participem na consulta e no acompanhamento durante o período de reflexão. E, como já referido, lá está o número 5, que foi erradicado em fevereiro de 2016.
Esta manutenção, até ao momento, das normas suprimidas em 2016 é tanto mais bizarra quando o DN, dando-se conta do erro, notificou o gabinete de Imprensa da PGR em email de 18 de setembro.
O jornal não obteve resposta, mas a página da lei foi alterada entretanto: agora tem um aviso a verde que diz "[NOTA de edição - Por força da alínea b) do art.º 3.º da Lei n.º 3/2016, de fevereiro, foram repristinados, na sua 1.ª versão, os artigos 2.º e 6.º, do presente diploma. Deste modo, a versão dada pela Lei n.º 136/2015 (...) encontra-se desatualizada.]
Sucede que tal nota não é esclarecedora; quem ler o diploma tal como se mantém na página fica com a ideia de que é a versão atual. Ou seja, que objetores de consciência podem conduzir consultas de IVG, que as respetivas declarações de objeção não podem ser objeto de registo e que as mulheres são "obrigadas" à reputada de humilhante, indigna e coerciva "obrigatoriedade de acompanhamento".
Assim, o site da PGR está a induzir em erro quem o lê. Pode ter sido o caso do gabinete jurídico da OM.
Previamente à publicação deste texto, o DN alertou o gabinete de imprensa da OM e o próprio bastonário, Carlos Cortes, para o facto de o "documento clarificador" sobre objeção de consciência em IVG remeter para normas legais inexistentes. Também a OM não respondeu ao alerta do jornal.