Isto não é uma telenovela
Perante a estreia de Annie Ernaux - Os Anos Super 8, justifica-se uma pergunta: como é que a maior parte dos espectadores de cinema reage ao facto de se dizer que um determinado filme foi rodado em imagens Super 8? Receio que não haja reação a registar. Esses espectadores - não poucas vezes influenciados pela linguagem de profissionais a quem se poderia pedir, no mínimo, que pensassem duas vezes antes de usarem determinadas palavras - deixaram até de dizer que um filme foi "rodado", ou simplesmente... "filmado". Passou a prevalecer a pobre terminologia televisiva segundo a qual tudo é "gravado" - como se tudo fosse uma telenovela.
Pois bem, resistamos à linguagem comum e aos seus preguiçosos... lugares-comuns. E celebremos o mínimo olímpico: Annie Ernaux - Os Anos Super 8 não é uma telenovela. Acrescentando uma ironia paradoxal e saborosa: se é verdade que, nas suas monótonas rotinas, as telenovelas se alimentam de histórias, crises e imagens familiares, então não poderia haver filme mais genuinamente familiar. Estamos, de facto, perante memórias privadas que ficaram registadas - filmadas, precisamente - em película Super 8.
São imagens de uma década (1972 a 1981) em que a vida da escritora com o marido, Philippe Ernaux, e os seus dois filhos foi pontuada por algo que, não tendo sido propriamente uma moda, definiu uma tendência, de uma só vez particular e "social", de algumas famílias. A saber: o registo das situações mais variadas, dentro e fora de casa, com as câmaras amadoras que a Kodak lançara no mercado em 1965 (viriam a cair progressivamente em desuso em finais da década seguinte, "vencidas" pela vulgarização das câmaras de vídeo).
Não se trata, entenda-se, de um banal reflexo "mediático" do facto de Annie Ernaux ter sido consagrada com o Nobel da Literatura, anunciado há pouco mais de dois meses: o filme foi apresentado em maio, em Cannes, integrado na Quinzena dos Realizadores. Assinado pela escritora e pelo seu filho David Ernaux-Briot, nasceu de um desejo plural de revisitação. Como responsável pelo texto em off (que ela própria lê), Annie Ernaux resume assim esse desejo: "Face àquelas imagens mudas, senti o desejo de as integrar numa narrativa cruzando o íntimo, o social e a história, expondo o gosto e a cor daqueles anos."
Daí o misto de intimidade e mapa coletivo: temos acesso à vida da família Ernaux, entre alegrias e sobressaltos, ao mesmo tempo deparando com ecos da França pós-Maio de 68. Será, talvez, inevitável aproximar a serena beleza do filme do seu livro Os Anos, Prémio Marguerite Duras de 2008 (ed. Livros do Brasil, tradução de Maria Etelvina Santos), também ele uma antologia de memórias pessoais, embora envolvendo um maior período temporal. Não num sentido "ilustrativo", antes porque o livro pode ser lido como uma espécie de metódica contradição simbólica das imagens da família. Porquê? Porque se trata de não perder a ligação com as palavras. Ou como Annie Ernaux escreve logo a abrir: "Todas as imagens irão desaparecer".
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