Israel. Onde a dor é menos forte do que a lamentação

Mala de viagem (91). Um retrato muito pessoal de Israel
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Ir a Jerusalém e não ir ao Muro das Lamentações é como ir a Roma e não ver o Papa. As fotografias e os vídeos não nos dão uma parte essencial deste lugar, como os cheiros, a temperatura e os sons na sua plenitude. Há que ir lá. Convém lembrar que, em Jerusalém, cristãos, à volta do Santo Sepulcro, muçulmanos, a norte das mesquitas da Rocha e Aqsa, e judeus, a partir do Muro das Lamentações, concentram-se em bairros próprios. Os israelitas e os palestinianos reivindicam a cidade como a sua capital. No entanto, enquanto Israel mantém as suas principais instituições governamentais em Jerusalém, o Estado da Palestina apenas a prevê como a sua futura sede política. O que mais importa dizer é que Jerusalém sempre foi uma cidade mítica e mística, tanto para os judeus como para os cristãos e muçulmanos. As orações e os cânticos sobrepõem-se em tons mais altos e fazem uma espécie de reza coletiva, em que cada um recita ou lê uma parte da "Torá", que contém as páginas sagradas dos hebreus. Porém, foi num sábado que decidi ir ao Muro das Lamentações. Só depois soube que é durante o famoso "shabat" que se proíbe o uso de aparelhos acionados por botão. Muitos dos judeus ortodoxos estão cobertos por véus brancos, e os momentos de reza coletiva são ainda mais catárticos e cénicos. Fui ao entardecer, quando há menos gente, a luz cai e as andorinhas fazem uma revoada que embeleza o céu. Para quem tem fé, ali há entrega em acreditar na força do lugar; e, para quem não a tem, então, nem que seja a força do património físico que punge o olhar. O passeio pelos túneis permite alcançar segmentos ocultos, tocar nas pedras originais e caminhar pelos espaços subterrâneos. No exterior, os visitantes colocam, nas fissuras do muro, bilhetes com preces, reflexões e meditações sobre o sentido da vida. Para criar espaço, esses bilhetes são retirados duas vezes ao ano e levados para o cemitério judaico no Monte das Oliveiras, onde são enterrados de acordo com a tradição. Se o simples ato de colocar um bilhete pode ser feito independentemente do contexto de cada um de nós em termos de crença (ou descrença), eu também o fiz, mas trata-se de um ato confidencial, no meu caso exclusivamente sobre o sentido da vida, tal como a ideia diversa que temos da tolerância, provavelmente a melhor das religiões. Na época, precisamente, construía-se o Museu da Tolerância, entre a Praça Zion e o bairro de Mamilla, no centro da Jerusalém Ocidental. Ambicionava-se a promoção da democracia e do diálogo e conta-se com a visita de todos, independentemente da idade, da religião e da cultura. De particular destaque, idealizava-se a exibição "Vozes pela Tolerância", com histórias de três heroínas das três principais fés - judaísmo, cristianismo e islamismo -, como ícones da luta pela dignidade humana e estimulando os sonhos, as esperanças e a juventude. Porém, o processo não tem sido pacífico. Críticas de palestinianos, de muçulmanos e de alguns judeus incidiram, desde logo, na localização escolhida, em parte do terreno de um cemitério muçulmano. No meio de diferentes processos de tribunal, a construção avançou e será inaugurada em 2023, porque essa parte do cemitério já tinha sido transformada, há décadas, em estacionamento. Afinal, o nome do museu faz jus a quem mediou este processo difícil. E toda a tolerância se torna, com o tempo, num direito adquirido.

Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.

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