Isabel Jonet: "Não ganho um tostão há 25 anos. Sou voluntária, é quase uma missão de vida."

Na véspera de mais uma campanha de recolha de alimentos, que decorre neste fim de semana, a presidente da Federação dos Bancos Alimentares garante ao DN que continua a haver muita "pobreza envergonhada" e que a recuperação económica não chegou às famílias mais pobres. Numa conversa em que não se define ideologicamente, Isabel Jonet diz que não se arrepende de ter dito que os portugueses não podem comer bifes todos os dias.
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Em criança já andava nestas angariações de alimentos para os mais pobres? Tendo sido criança ainda numa altura em que a pobreza era regra em Portugal...

Não sei se havia propriamente campanhas de angariação de alimentos para os mais carenciados. Aquilo que sei é que cresci com valores de partilha e de solidariedade e os meus pais incutiam-nos, somos cinco filhos, que devemos fazer parte e participar ativamente com aquilo que somos e com aquilo que temos. E por isso, com 12 anos, durante as férias de verão, que eram muito longas - no nosso tempo eram de 10 de junho a 6 de outubro -, fazíamos sempre voluntariado no Hospital de Sant'Ana, na Parede, a entreter crianças que estavam à espera para ser operadas, numa altura em que não era regra os pais poderem estar ao pé dos filhos, mas admitiam jovens voluntários. Portanto, a partir dos 12 anos sempre fiz voluntariado.

Era da linha de Cascais.

Sim, moro ainda hoje na Linha.

E nasceu e cresceu nessa zona. A sua família era rica?

Eu diria antes que era uma família média, remediada, como se dizia antigamente, hoje já não se utilizam essas palavras. Andei no Liceu de Oeiras, escola pública, e depois apanhei a altura do 25 de Abril.

Como viveu essa fase?

Com muita excitação, que acho que é aquilo que poderia caracterizar. Participávamos em comícios, assembleias gerais...

Mas teve alinhamento ideológico nessa altura?

Sim, o meu alinhamento foi sempre constante. É bastante liberal e nunca extremista. Tinha muitos amigos do MRPP, até porque no Liceu de Oeiras havia um grupo grande do MRPP que era um grupo muito simpático e alinhávamos... era muito eclética. Andar no Liceu de Oeiras naquela altura, do 25 de Abril, foi uma experiência incrível. Penso que os liceus, as escolas públicas, não vivem hoje esses momentos. Era um fervilhar até de tantas coisas, de descoberta, de caminhos e de ideologias diferentes. Tudo isso era muito escondido.

Mas quando diz liberal é num sentido mais de direita ou mais de esquerda?

Eu não tinha qualquer tipo de partido.

Mas define-se mais de um quadrante ou do outro?

Depende daquilo que queira situar isso. Aquilo que eu defendo é que deve haver justiça social. E essa justiça social tem que ver sobretudo com valores e menos que ver com partidos ou ideologias. Tem mais que ver com crença e forma de vida, com convicções. Portanto não me identifico tanto com esquerda ou direita mas com uma forma de viver que defende a justiça e aquilo que são os valores pelos quais tenho regido a minha vida e pelos quais educo os meus cinco filhos.

Que valores são esses?

São os valores universais, em que todos os homens são iguais e todos fazemos parte uns dos outros e devemos, por dever de cidadania, intervir. E quando digo intervir quero dizer intervir na política, na solidariedade, em todas as vertentes em que podemos ter um papel ativo. Hoje as pessoas demitem-se muito e escondem-se atrás, até, de agrupamentos, grupos de ideias e até intervêm menos do que poderiam

Escondem-se a que nível? Que tipo de grupos?

Seja o que for. Há um conjunto de alinhamentos que muitas pessoas têm que leva a que a intervenção individual deixe de parecer que faz sentido. Eu acredito que cada um de nós tem um papel e esse papel pode ser mais potenciado no seio de grupos mas que não pode ser minorado porque esses grupos existem.

Falou do liceu. Depois foi para Economia, na Católica. Suponho que aí o confronto ideológico já fosse mais esbatido. Apanhou o final da década de 1970...

1977. Tinha 17 anos. Sabe porque fui para a Universidade Católica? Para não fazer o ano propedêutico [ano preliminar de estudos que se fazia entre o último ano escolar e a universidade]. Para poupar um ano de estudos.

Queria começar a trabalhar?

Queria acabar, queria começar a trabalhar. Devo dizer-lhe que já durante a universidade sempre ganhei o meu dinheiro.

A fazer o quê?

A trabalhar num restaurante. A servir na cozinha, a fazer comida, que esse restaurante servia jantares.

Em Lisboa?

Em Lisboa. Ao longo da minha vida sempre ganhei o meu dinheiro. E sempre tive a ideia de que, apesar ter semanada (que não era muito grande porque os meus pais não davam semanadas grandes), tinha de ganhar o meu dinheiro para poder ser dona das minhas escolhas e das coisas que queria consumir. Por isso, desde o 6.º ano do liceu que sempre trabalhei e fiz imensas coisas: babysitting, dei explicações. Quando acabei o liceu nem sabia bem para onde queria ir. A única coisa que sabia é que sei organizar e arrumar. Poderia ter ido para Agronomia. A minha mãe e o meu pai são agrónomos e a minha irmã mais velha é de Agronomia. E, portanto, poderia ter ido para Agronomia, mas não sabia muito bem o que queria e, de repente, a Universidade Católica permitia não fazer o propedêutico. Ao entrar na Universidade Católica havia um exame de admissão - fiz para a Universidade Católica e para a Universidade Livre porque eram as duas universidades de Gestão que havia na altura. Quando entrei poupei um ano. O curso ainda era de cinco anos, acabei o curso com 22 anos. Logo a seguir ao curso casei-me. Era o percurso tradicional. Mas já estava a trabalhar quando me casei. Trabalhei na Sociedade Portuguesa de Seguros. Acabei o curso em junho e fui trabalhar para a Sociedade Portuguesa de Seguros.

É conhecida como a presidente da Federação dos Bancos Alimentares, mas que mais fez na carreira além disso?

Imensas coisas. Sabe que eu digo sempre que pessoas desassossegadas não têm vidas sossegadas. E nunca fui uma pessoa sossegada. Interiormente sossegada. E sempre fiz muitas, muitas coisas. Além do que faço no Banco Alimentar tenho imenso interesses e faço imensas coisas. Trabalhei numa seguradora, depois fui para Bruxelas, porque o meu marido foi trabalhar como jornalista para Bruxelas antes da adesão. O meu marido foi em 1984 e 85, estava à espera da minha primeira filha e fui para Bruxelas, dessa vez só lá estive três meses. Voltei a trabalhar cá em Lisboa, na Sociedade Portuguesa de Seguros, que era do grupo Assurances General de France. Entretanto fiquei grávida do meu segundo filho e fui trabalhar seis meses para a Assurances General de France em Bruxelas. Mas não gostei nada. E saí. Não gostei desse emprego, desse lugar, porque as mulheres eram completamente desconsideradas. E eu aqui estava habituada a ser adjunta da administração, portanto a ter autonomia e reconhecimento pelo meu trabalho que em Bruxelas naquela época não havia. Saí ao fim de seis meses e depois tomei a decisão de ir mesmo para Bruxelas, com os dois filhos, e fiz um concurso para a Comissão Europeia, para o comité Económico-Social, para o serviço de traduções e aí fiquei durante sete anos.

Está quase a fazer 25 anos de Banco Alimentar. Entrou em 1994...

Sim, aquilo que era natural para mim. Quando cheguei cá tinha já nessa altura três filhos, decidi ser voluntária. Dar algum tempo. Como os meus filhos mais velhos andavam no ensino em francês achei que ficar três meses em casa para os ajudar a poderem andar no ensino em português. Nessa altura fiz um concurso também para a Direção de Comunicação e Imagem da Comissão Europeia e ganhei a tradução de dois jornais. Como tinha algum tempo livre vim oferecer-me ao Banco Alimentar duas tardes por semana. Ao fim de um mês fazia parte da direção do Banco Alimentar. E isto porquê? O Banco Alimentar é um projeto extraordinário. Estou aqui há quase 25 anos. E hoje continuo a dizer o mesmo que disse e senti naquela altura. Eu entrei aqui e vim oferecer-me para dar duas tardes por semana e, de repente, aquilo que se percebe é que se está perante uma ideia que se tiver gestão pode ser totalmente potenciada.

Chegava a quantas pessoas na altura?

Tinha 16 instituições. E só havia o Banco em Lisboa. Hoje há 21 Bancos Alimentares, que chegam a 400 mil pessoas e a 2600 instituições

Mas como foi? Chegou e disse "têm aqui uma potencialidade enorme..."?

Sim, mas a equipa de direção era extraordinária, nessa altura. Era o senhor comandante Vasco Pinto, que foi o fundador dos Bancos em Portugal. Foi ele quem trouxe a ideia para Portugal. Eu nunca fundei nenhum Banco Alimentar, só ajudei a fundar. E quando cheguei ao Banco Alimentar não vi nenhum computador. A distribuição era feita com uma máquina de calcular com rolo. Isto foi há 25 anos, não foi há 40. E, de repente, foram pequeninas coisas - tenho uma lógica completamente matemática, se calhar deveria ter ido para Engenharia. O que se montou no Banco Alimentar foi um processo de gestão de distribuir de alimentos. As pessoas por vezes esquecem-se de que o Banco Alimentar, de que a sua missão é a luta contra o desperdício de comida. Hoje está muito na moda falar de desperdício alimentar. E da ideia do Banco Alimentar nasceram outras instituições, mas o Banco Alimentar já existe cá há 25 anos e na Europa há 35 ou 40. A ideia de que é uma injustiça deitar comida fora quando há pessoas que dela carecem. E quando lhe digo que toda a minha vida tem sido de valores, são estes valores. Quando me ofereci ao Banco Alimentar - andei à procura de um sítio para ser voluntária, podia ter sido visitadora nos hospitais, até porquê enquanto estive em Bruxelas tive de apoiar várias pessoas com doenças oncológicas - poderia ter feito outro trabalho voluntário

Foi um pouco por acaso que veio parar aqui?

Foi uma identificação com a missão. Ou seja, quando me pergunta se sou de esquerda ou de direita e eu digo que sou de valores, são estes valores. A minha vida rege-se por valores. E este, de lutar contra o desperdício, poderia dizer que é talvez o que me move mais. Lutar contra o desperdício de tudo. Contra o desperdício de tempo, contra o desperdício de amor, contra o desperdício de comida, contra o desperdício de pessoas.

Há pouco tempo teve uma frase mediática. Disse que os seus filhos tinham de poupar água quando lavam os dentes...

É água, é luz...

Que poupanças faz em casa?

Todas. Se uma luz está acesa desligo. Irrita-me, por exemplo, que os ecrãs dos computadores estejam ligados. São pequenas coisas. Eu digo muitas vezes que nunca vi a minha mãe a acender um fósforo. A minha mãe viveu a guerra, numa família em que havia privações. A minha mãe sempre usou o fósforo usado no piloto do esquentador. Este tipo de coisas passa-se de pais para filhos. O mundo mudou. O que penso que não deve mudar é a consciência de que os recursos são escassos e são talvez ainda mais escassos do que nós poderíamos pensar. Até porque há cada vez mais pessoas a precisar de usar o mesmo número de recursos. E esses recursos são recursos que são naturais.

Anda de transportes, por exemplo?

Ando de transportes. Sempre que posso.

Vem de comboio...

No dia-a-dia não, porque tenho de trazer uma filha. Não, porque durante o dia dou muitas voltas. Mas, se por exemplo, vou daqui para a Expo, para qualquer reunião no Parque das Nações, vou no comboio. E vou de comboio por uma razão muito simples. Demora 20 minutos, custa 1,20 euros e não tenho de estacionar. Mas também é por uma questão de racionalidade económica. Eu sou pela poupança, até pela racionalidade económica. É estúpido esbanjar recursos que são escassos. É estúpido lavar os dentes com a torneira a correr. Porque a água é um bem escasso. Mas não é porque vou pagar mais na fatura no fim do mês, é porque a água é um bem escasso e temos de cuidar dos bens. Por exemplo, quando começamos a substituir os sacos de plástico do Banco Alimentar por sacos de papel ninguém falava do plástico.

Acha que há mais alguma coisa que seja estúpida, na sua opinião, a este nível dos desperdícios?

Penso que hoje estamos todos desatentos aos outros. Porque temos muitas solicitações na nossa memória e no nosso bolso. Só gostaria que as pessoas percebessem que o tempo é o bem mais escasso que nós temos porque estamos na vida a prazo e temos de gozar cada minuto da vida bem. Não é perder tempo.

O Banco Alimentar vai ter nova recolha de alimentos neste fim de semana. 25 anos depois ainda é possível encontrá-la num qualquer supermercado?

Eu vou aos supermercados. Sou muito mais de terreno.

Onde vai estar neste fim de semana?

À tarde vou estar sempre no Banco Alimentar. Estou sempre aqui. Aliás tenho um turno na balança, o mesmo turno que os outros voluntários. Eu na campanha não tenho nenhum papel de responsabilidade. No Banco Alimentar procuramos (e em todos os 21 Bancos Alimentares) que haja responsáveis para cada departamento. E a campanha é um departamento importantíssimo. Porque é uma iniciativa que permite não só angariar alimentos mas também mobilizar 40 mil voluntários que, em cada Banco, sabem o que estão a fazer. Quando vestem aquela camisola não é só a T-shirt do Banco Alimentar. Sabem que estão a pedir alimentos para quem precisa de comida. E não nos podemos esquecer de que em Portugal há mais de um milhão de pessoas que vivem com menos de 250 euros por mês, e há dois milhões de pessoas que vivem com menos de 450 euros por mês. Um quinto da população portuguesa tem muito menos do que 450 euros por mês. Então, quando vivemos no século XXI e achamos que os bens estão ao dispor de todos, em Portugal digo-lhe que há pessoas que não têm liberdade para escolher a própria vida porque não têm rendimentos suficientes para poder fazer as escolhas todas. E isto reflete-se na vida de cada dia, da mesma forma que tenho vivido e como defendo que quando somos cidadãos de pleno direito então o Banco Alimentar o que propõe é que todas as pessoas possam ser voluntárias dando um bocado de tempo, um pouco do seu tempo, mas também, quando vão às compras para a sua casa, que possam partilhar com quem precisa o mesmo que vão comer à sua mesa. Há carências alimentares gravíssimas no nosso país, à nossa beira, há imensa pobreza envergonhada. E, ao contrário daquilo que as pessoas possam pensar - porque a televisão e as redes sociais mostram-nos um país bonito, onde há coisas extraordinárias como a Web Summit, ou inovações tecnológicas extraordinárias -, não nos podemos esquecer de que, ao mesmo tempo, há um quinto da população portuguesa que vive mal.

Mas critica que se aposte em coisas como a Web Summit?

Pelo contrário. Penso que deve investir-se de forma a criar riqueza, que gere os recursos suficientes para que se possa lutar contra a pobreza. E este tema de que a luta contra a pobreza cabe a cada um de nós, na medida das nossas disponibilidades e possibilidades, incumbindo ao Estado a questão dos direitos, é aquele pelo qual me bato há 25 anos.

O Banco Alimentar foi notícia durante a crise. E depois de a troika sair, pode ser uma perceção, houve menos notícias sobre o Banco Alimentar. Isso corresponde de facto a uma melhoria da situação ou acha que não há motivos para grandes festejos?

Penso que de alguma forma a situação económica do país melhorou. E houve sobretudo uma esperança, um espírito positivo, que é muito bom para a economia. Bom para a sociedade em geral. Queremos contribuir e não estarmos deprimidos gera boa onda, digamos assim. Gera uma dinâmica positiva. Aquilo que posso afirmar com toda a convicção é que a recuperação económica que houve não chegou às famílias mais pobres. Se, por um lado, houve algumas melhorias em abonos, o abono de família, apoio social ao idoso, por outro lado, há um conjunto de impostos, nomeadamente os diretos, que fizeram que o rendimento não aumentasse. Mas aquilo que eu noto é que nos últimos meses sentimos como que algum agravamento da situação das famílias mais carenciadas. E sentimos que há outra vez mais endividamento das famílias, mais salários penhorados e há, sobretudo, um conjunto de pessoas que perderam o acesso ao subsídio de desemprego e que estão neste momento a lutar com sérias dificuldades, até para obter o rendimento social de reinserção. O desemprego continua a ser muito alto, sobretudo junto das pessoas menos qualificadas. Por exemplo, nós temos muitos deficientes no Banco Alimentar. Temos isto como filosofia. Integrar pessoas menos qualificadas mas também pessoas que não encontram lugar. Estas são pessoas que não têm lugar na sociedade. Estas pessoas não são contadas. Isso é que me incomoda muito. Pensar que no Portugal do século XXI há pessoas que não são contadas. Isso não pode ser. Todos são cidadãos. E nós defendemos aqui que todas as pessoas devem fazer parte deste Portugal que se quer moderno e queremos moderno. Eu tenho cinco filhos. Dois deles não estão cá. Um está em Madrid e outro está em Londres. E isso custa. Não vou ver crescer esses netos. Porque eles tiveram de ir para fora procurar emprego.

Durante a crise?

Sim, foram. Mas naturalmente. No entanto, preocupa-me que haja pessoas que não tenham essa capacidade de ir para fora. E, portanto, se me pergunta se sou de direita ou de esquerda, eu não sei. O que eu não posso é assistir impávida a um conjunto de pessoas que estão fora do mercado, que estão fora da sociedade e que se encontram até privadas da liberdade de escolher.

Voltemos aos hábitos que se estão a retomar e que provocaram problemas às famílias e levaram à crise. Acha que essa corrida ao crédito é uma das tais coisas estúpidas em que muitas vezes caímos?

Penso que sim, mas até parece que pode ser natural. Uma pessoa que não tem acesso a tudo aquilo que quer e que, de repente, é inundada com anúncios, que parece fácil ter-se aquilo que se quer, é tentada, quando tem até pouca formação ou informação financeira, é tentada a experimentar esse recurso. Porque é que não há de ter? Isso retomou-se. Não há nenhuma poupança. Não se incutiram hábitos de poupança. Tenho 58 anos, a minha filha mais velha tem 33 anos. Quando eu nasci a minha avó dava-nos o mealheiro do Montepio. Desde que as crianças nasciam era incutido um hábito de poupança. Nenhum dos meus filhos... quando poupam é para uma viagem. Ou seja, há uma noção de poupança que é totalmente diferente. E mesmo quando se poupa é para um consumo imediato e não para um consumo de uma casa ou o que seja. Isso é algo que me preocupa muito. Hoje, na sociedade portuguesa, é a total ausência de poupança. Porque não há margem para poupar.

Isso faz lembrar uma das suas frases mais polémicas. Continua a achar que os portugueses não têm de comer bifes todos os dias?

Continuo a achar que essa frase faz sentido. Ou seja, isso é uma metáfora. Penso que todos devemos ser responsáveis pelas nossas vidas. Sempre fui responsável pela minha vida. Com 15 anos trabalhava para ter dinheiro para as minhas despesas. As pessoas devem limitar ou orientar os seus consumos para aquilo que são as suas posses. E quando se vive acima das possibilidades, seja nas famílias, seja nas empresas, seja nos países, por vezes atingem-se níveis de endividamento que são insustentáveis. E parece-me que parte da crise que houve foi porque foi incutida essa mentalidade. E o meu receio é que se esteja a caminhar para uma situação que eu não gostava de ver repetida. Quando foi a grande crise, aqui no Banco Alimentar assistimos a situações verdadeiramente dramáticas. Em 2007 foi manchete do Expresso, na campanha de maio do Banco Alimentar, fizeram-me uma entrevista e eu disse: "Estamos a assistir a uma nova categoria de pessoas que designaria de novos pobres. São médicos, professores... que não têm dinheiro." Isso foi em 2007. Caíram-nos em cima. Classe média sobre-endividada. O alerta veio do Banco Alimentar. Nessa altura caíram-nos em cima dizendo que se essas pessoas já ganharam bem agora paguem. Esta mentalidade é que não gostaria de ver repetida. E acho que se perdeu um tempo, e isso é que lamento, perdeu-se tempo para educar e para incutir nos jovens...

Não aprendemos nada?

Nem ensinámos. Além de não termos aprendido, não ensinámos aos nossos filhos, aos nossos jovens, que aquilo que parece estar garantido não está completamente garantido se não tivermos um papel ativo. Portanto, somos responsáveis pela nossa própria vida. E quando eu disse essa frase, e não me arrependo nada, é porque acredito que cada um de nós é responsável pela sua própria vida.

Essa frase trouxe-lhe problemas? Correram petições a pedir a sua demissão. Embora tenham existido mais petições a contrapropor...

Sabe que eu não ligo nada a esse tipo de movimentações.

Como é que viveu essa fase? A frase teve um grande impacto.

Não liguei nenhuma.

Não foi abordada na rua?

Não. Sempre que fui abordada na rua foi com simpatia. Mas a simpatia não é por mim. É pela instituição. Uma instituição que ao fim de 25 anos ajuda a alimentar 4% da população portuguesa, mas que o faz suscitando a generosidade de portugueses, sejam pobres, remediados, ricos, é uma instituição que é completamente transversal à sociedade portuguesa. Eu diria que talvez o melhor que se fez no Banco Alimentar foi esta universalidade. O Banco Alimentar não recebe dinheiro do Estado ou da Igreja. Não recebe dinheiro de partidos políticos nem de clubes de futebol. Portanto, há uma total independência. A maior parte dos Bancos Alimentares vivem apenas da generosidade das comunidades locais. Dos donativos das pessoas e das empresas que localmente querem apoiar aquele Banco para dar de comer a quem tem fome naquela região. E que querem, e isso é muito importante, dar trabalho e ser voluntárias. Esta universalidade e esta rede de voluntariado e de aceitação geral e de simpatia que os Bancos Alimentares suscitaram só foi possível porque somos independentes. Em Portugal as pessoas não sabem ser independentes. Em Portugal as pessoas todas têm de ter um alinhamento, seja político seja religioso ou desportivo. E o facto de haver algo que é independente incomoda, porque as pessoas não estão habituadas a uma independência. A primeira pergunta que me fez foi se era da direita ou da esquerda. Não sou de nada. Qual é o meu clube de futebol? Não tenho. Tenho simpatia por um, pelo Sporting, mas sabe porquê? Porque os meus filhos são desse. Pessoalmente é-me indiferente.

Incomoda-a que seja conotada com um determinado lado?

Não. É-me indiferente.

Mas tem noção de que é mais conotada com a direita...

Valores católicos, sou católica. Acredito numa coisa que me dá muito conforto. É que estamos nesta vida a prazo e que há uma vida para lá desta vida. Porque senão a nossa vida não teria sentido. Acredito nisto. Se isso é de direita ou de esquerda... não faço ideia.

O Banco Alimentar é a sua principal fonte de rendimento?

Eu sou voluntária, não ganho um tostão.

De onde é que vem o seu rendimento?

Não tenho. Prescindi do meu salário. Porque acredito neste projeto.

Mas vive como?

Do ordenado do meu marido. Eu não ganho um tostão há 25 anos. Eu sou voluntária, prescindi do meu salário. É quase uma missão de vida. Foi uma opção de vida. Consultei a minha família. Disse que gostava do que fazia e que para fazer a diferença tinha de trabalhar muito. Até tive de deixar as traduções que fazia para Bruxelas. Na altura ganhei o concurso e ainda fiz durante dois anos. Mas trabalhava tanto aqui que fazia-as à noite. E tinha três filhos. E portanto não era possível. Eu decidi ser voluntária. E nunca ganhei um tostão que seja. Decidi oferecer o meu tempo.

O Banco fecha às 18 horas...

Sim, depois trabalho em casa. O que tiver de fazer faço em casa. Há também o tempo para a família. E faço tapetes de Arraiolos, empalho cadeiras, tenho muita atividade manual. E sempre que tenho atividade manual crio projetos, crio coisas novas. É quase como se a minha cabeça precisasse de uma atividade de mãos para criar coisas. E cozinho.

Ainda tem algum filho a viver consigo?

Tenho dois.

Os tais que ainda precisam que lhe digam para fechar as torneiras?

Não, disse quando eram pequenos. Agora digo às minhas netas. Às sextas-feiras nunca marco nada, tomo conta das minhas netas. Se tenho reuniões trago as minhas netas, como já trouxe os meus filhos mais pequenos. A minha filha com 18 anos, com 7 dias estava deitada num berço em cima desta secretária porque eu tive um bebé e em 15 dias morreram três diretores do Banco Alimentar e eu tive de reconstruir uma direção. Portanto ela tinha de vir para aqui. Ou vinha ou não mamava. Acho que as pessoas quando têm vontade e disponibilidade fazem coisas. Eu tenho sorte de poder fazer coisas.

Tem 25 anos de Banco Alimentar, tem 58 anos, daqui a dez estará em idade de reforma. Continuará a estar à frente do Banco Alimentar ou ainda quer fazer outras coisas?

Eu quero fazer muitas coisas. E, se tiver saúde, quero fazê-las. Primeiro do que tudo tenho de gozar os meus netos. Se pensar que para além de si há nova vida, passa também pelos seus filhos e pelos seus netos. A minha mãe, por exemplo, tem 24 netos e já tem 17 bisnetos e, portanto, é um gozo. Dá sentido à nossa vida porque há vida para lá da nossa vida. Essa outra vida pode até ser uma vida que nos prolonga. Mas não tenho dúvida de que ainda vou fazer outras coisas. Tenho uma grande capacidade de ter ideias e de as concretizar. E tenho a certeza de que as vou fazer. A Entreajuda nasceu do Banco Alimentar e parece uma continuação natural do Banco Alimentar. Se as instituições tiverem melhor gestão distribuem melhor o pão. No âmbito da Entreajuda já lançámos muitos projetos. Recentemente lançámos o projeto que é o Tempo Extra, para propor aos colaboradores que estão em reforma e pré-reforma das empresas que deem à sua própria vida um tempo extra fazendo aquilo que têm vontade, voluntariamente. Seja na cultura, na solidariedade, na defesa dos animais. Há um conjunto de ideias que ainda quero concretizar.

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