Irma: "Vou lutar sempre para que o racismo não seja uma questão de opinião"
Como correram os últimos meses em termos musicais, sobretudo quando ao mesmo tempo lançou um novo EP. Deu muitos concertos?
Costumo dizer que quando lancei o meu primeiro álbum, em 2020, foi como me tivessem pedido uma receita, fiz um grande cozido e nessa mesma altura toda a gente entrou em dieta. Fiz o disco mas com a pandemia em alta e tudo fechado foi frustrante não conseguir colher o que plantei. Mas este ano já está a ser diferente e estou a colher tanto o que foi feito como com o novo EP, Filha da Tuga. Foi um verão que me fez ter uma imagem de fora de como está a vida. Às vezes estamos tão ansiosos com as nossas coisas e com o que queremos que não prestamos atenção às coisas boas que estão a acontecer.
Destaquedestaque"Agora consigo dizer que faço um afro pop, faço música pop com a minha história."
E depois do álbum, que não foi logo "digerido", teve a escolha de lançar já mais músicas como o novo trabalho.
Sim, porque o álbum englobou dez anos na minha vida, aliás tenho lá temas que fiz quando tinha 18 anos. O EP é diferente, senti necessidade de me focar numa certa altura temporal. Alguns dos temas até foram escritos durante a pandemia.
Como é que define o seu estilo de música?
Às vezes perguntam-me o que ouço, e ouço muitos géneros diferentes de música. Um dos meus ídolos é o Pat Matheny que não é cantor, como se sabe, e não tem nada a ver com aquilo que faço. Agora consigo dizer que faço um afro pop, faço música pop com a minha história.
O lançamento da música (e também nome do EP) Filha da Tuga causou muitas reações sobre racismo nas redes sociais. Como lidou com isso?
A música Filha da Tuga não é só sobre mim. O racismo é uma coisa muito concreta, não é uma opinião. É uma coisa que existe, ponto final, de formas e graus diferentes. Não podemos comparar o racismo que existe nos EUA com o que se passa em Portugal, é sempre mau, atenção. Mas acho que a nossa luta deve ser travada tendo em conta o tamanho da guerra, e não devemos descontextualizar a luta. O que aconteceu com os comentários... como em tudo há pessoas mais bem informadas que outras, mais bem educadas que outras, mas teve sobretudo a ver com uma palavra, "descoberta", que um grupo de pessoas pegou para dizer que eu estava a romantizar os descobrimentos, o que não estava e nem me interessa tornar obra poética os descobrimentos e as caravelas. Tentei esclarecer que a descoberta foi dos meus avós que em 1975 vieram de Angola para Portugal e tiveram que descobrir uma terra do zero, e daí veio essa palavra. Agora, vamos começar a ser polícias e não podemos dizer a palavra descoberta? E mais uma vez, as redes sociais são muito ingratas nesse aspeto pois as pessoas polarizam-se: ou és contra ou a favor, mas, como já se escreveu, entre o bem e o mal existe um jardim. Depois, o negro não sente o direito de me defender porque não vai ser aceite na comunidade, o branco diz que não tem direito a falar porque é branco. O que me aflige mais é a falta de liberdade que isso causa.
Mas a música não é um campo onde essa polarização se esbate? Sobretudo na música que se faz nos últimos anos em Portugal?
Acho que há muito caminho a percorrer. O ser humano tem prazer em arranjar um alvo a abater. É o que acontece nas redes sociais. A partir do momento em que me disponibilizei para debater e conversar, foram muito poucos os que responderam. Foram poucas as pessoas que me disseram: "vamos jantar, vamos conversar". Mas aconteceu e foi incrível. Conheci a ativista Cleo Diára, que é uma mulher muito inspiradora e aprendi muito com ela. Porque esta é uma luta muito concreta e há um caminho a percorrer. A questão é como o fazemos e com que dignidade o fazemos. Achincalhar no Instagram não vai tornar a luta maior, é só uma perda de tempo. A canção Filha da Tuga foi feita por uma filha de pais angolanos que têm cultura angolana dentro de casa. E que por ter um tom de pele mais claro não tenho direito a falar sobre isso? Dizem que agora é que estou a falar disso, da minha cultura que nunca falei, mas o facto é que tenho uma música no primeiro álbum, Monami, em que o refrão está em quimbundo, mas ninguém fala sobre isso...
O racismo é um tema para voltar em futuras músicas?
Acho que só posso responder com obra. O artista tem de responder com obra.
E o facto de ser mulher influenciou a polémica?
Sim, acho. Se esta música fosse feita por um homem não tinha acontecido a polémica como aconteceu. O que é que acontece no hip hop e no funk? Com letras disparatadas, misóginas. Mas voltando à questão, vou lutar sempre por mais representatividade e para que o racismo não seja uma questão de opinião, e para que o meu filho não tenha vergonha do seu cabelo. Lutarei sempre por isso tudo. E também pela minha liberdade e para expressar aquilo que eu sinto. Não quero um mundo em que as pessoas tenham medo de dizer o que pensam.
Voltando à música, como é o método criativo?
É uma coisa caótica e inquietante. Não componho quando me sinto bem, pelo contrário, é quando estou mal que o faço, quando já não cabe dentro de mim e tenho de escrever sobre isto. Acontece de várias formas, mas geralmente componho à guitarra, embora este EP tenha sido um pouco diferente. Algumas músicas foram criadas com outros métodos, em estúdio, em cima do beat escrevi as letras, abri a criação a outras pessoas e os horizontes também se abrem. Confiar no processo de criação em conjunto é muito importante.
Há uma carreira de atriz no passado recente. Está posto de lado voltar aos palcos ou à televisão?
Estou muito focada na música, e percebi que tenho de canalizar a energia para um lado. Vou trabalhando como atriz para fazer coisas que gosto genuinamente, pelos projetos, pelas pessoas, mas estou focada na música.
E agora, depois do lançamento deste novo EP, o que se segue?
Vou estar em Famalicão a 19 de novembro, a abrir o concerto de PJ Morton. No dia 26 de novembro vou estar no Super Bock em Stock, e no dia seguinte estarei numa sala do Coliseu do Porto. Estou muito contente de levar o meu projeto pela primeira vez ao Porto.
E olhando para a frente, como gostava que fosse a evolução da carreira a cantar e compor?
Estou numa fase da minha vida em que estou mais focada no presente. Isto parece um pouco foleiro de dizer (risos) mas é mesmo verdade, tenho feito esse exercício de me focar no que está a acontecer agora. Vejo a velocidade a que o meu filho cresce e fico assustada. Quero apreciar o que está a acontecer agora. Mas tenho sonhos, de cantar lá fora, por exemplo. Fui ao festival de Montreaux este ano e foi um sonho, senti que a minha música, mesmo em português, foi muito bem recebida.
filipe.gil@dn.pt