Irlanda do Norte, a outra bomba-relógio do Reino Unido

Província britânica vê o reinício das conversações entre os principais partidos para que volte a existir um governo e uma assembleia funcionais. Nacionalistas querem ativar o referendo para a unificação da Irlanda, previsto no acordo de paz.
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Perante a vitória com maioria absoluta do Partido Conservador de Boris Johnson nas eleições gerais de quinta-feira, o antigo líder do Partido Unionista do Ulster comentou: "Penso que a grande ironia de tudo isto é que durante décadas os unionistas olharam por cima dos ombros e decidiram que os nacionalistas irlandeses eram a grande ameaça. Mais recentemente eram os nacionalistas escoceses, mas na verdade é o nacionalismo inglês que representa a ameaça existencial para o futuro da união", disse Mike Nesbitt à BBC, a propósito da vitória dos conservadores.

As atenções viraram-se em primeiro lugar para Edimburgo. A chefe do governo escocês Nicola Sturgeon envolveu-se numa troca de palavras com o vencedor das eleições, ao afirmar que Boris Johnson não está mandatado pelos escoceses para retirar o seu país da UE, pelo que irá avançar com o processo para um novo referendo à independência.

Além da Escócia, o novo governo britânico vai ter de lidar com outro tema tão ou mais sensível: a Irlanda. Se na Escócia os nacionalistas aumentaram a representação em Westminster de 35 para 48 deputados (em 59 possíveis), na Irlanda do Norte, pela primeira vez, os partidos nacionalistas elegeram mais deputados do que os unionistas.

Os resultados das eleições na Irlanda do Norte mostraram uma queda do conservador DUP (Partido Unionista Democrático). O partido que nos últimos dois anos e meio foi aliado parlamentar dos conservadores elegeu oito deputados (menos dois do que em 2017) nas 18 circunscrições. E o seu vice-presidente e até agora líder da bancada Nigel Dodds falhou a eleição para o candidato dos nacionalistas de esquerda do Sinn Féin, John Finucane. Este lucrou com o pacto realizado com o Partido Trabalhista e Social Democrata (SDLP) - cada formação desistiu de candidato próprio para benefício da outra em três circunscrições.

Contas feitas, o Sinn Féin manteve os sete lugares (apesar de o partido seguir o princípio do seu fundador, Arthur Griffith, de não comparecer em Westminster e de não jurar fidelidade à rainha), e o SDLP voltou a eleger (dois deputados), depois de em 2017 ter pela única vez ficado de fora da Câmara dos Comuns desde que se apresentou a eleições, em 1974. Também o Aliança voltou a eleger um deputado, mas este partido declara-se neutro perante a dicotomia entre unionistas e nacionalistas, pelo que há agora nove eleitos pela unificação irlandesa e oito eleitos favoráveis à permanência como província do Reino Unido.

Voto na moderação

Acima de tudo, houve um aumento de votos e de eleitos em partidos moderados, um sinal dos eleitores para que os principais partidos retomem o diálogo. O executivo de partilha obrigatória do poder na região, parte fundamental do acordo de paz de 1998 (que ficou conhecido como Acordo de Belfast ou Acordo de Sexta-Feira Santa), colapsou no início de 2017, após um desentendimento entre o DUP e o Sinn Féin.

Por outro lado, o DUP perdeu o peso político que tinha em Londres, tendo em conta que os conservadores já não precisam do seu apoio parlamentar. O DUP votou por três vezes contra o acordo negociado por Theresa May e também se mostrou contra o acordo de Boris Johnson, que deixa a Irlanda do Norte alinhada com as regras europeias, criando barreiras no movimento de mercadorias com a Grã-Bretanha.

"Espero agora que seja de uma forma que tire todo o Reino Unido da União Europeia e não apenas parte dele", disse a líder do DUP, Arlene Foster, sobre o Brexit.

"Por causa da maioria de Boris Johnson, o DUP terá agora de se concentrar novamente no norte, nas relações connosco e com outros partidos, e penso que isso ajuda nas negociações", disse por sua vez Eoin Ó Broin, deputado do Sinn Féin em Dublin.

"Assistimos a um verdadeiro aumento na [representatividade da] política moderada e penso que isso diz muito sobre a ansiedade e impaciência para que o Stormont [a assembleia] volte a funcionar. Penso que podemos progredir muito rapidamente", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros da República da Irlanda, Simon Coveney

Coveney copreside, com o ministro britânico para a Irlanda do Norte, Julian Smith, às conversações iniciadas na segunda-feira entre os partidos da Irlanda do Norte com o objetivo de reabrir a assembleia e restituir o governo de partilha local, há mais de mil dias sem funcionar. O prazo para o governo regressar às suas funções esgota-se no dia 13 de janeiro de 2020. Caso contrário, e como Julian Smith já sinalizou que não há qualquer interesse em conceder uma terceira extensão do prazo, Londres terá de convocar eleições.

No final da primeira reunião, a líder do Sinn Féin disse que os "ingredientes para o sucesso" são o estatuto da língua irlandesa, uma reforma no regimento da assembleia, a "formação de um executivo inclusivo" e "uma grande injeção de dinheiro" no Serviço Nacional de Saúde.

A questão do reconhecimento da língua irlandesa tem sido bloqueada pelo DUP.

"Penso que a maior tragédia do processo de conversações seria que o executivo voltasse a funcionar e depois falhasse. É preciso abordar de frente as principais questões que precisam de ser resolvidas", comentou o ministro Julian Smith.

"Eleições históricas"

Para a líder do Sinn Féin, o escrutínio de dia 12 foi "uma eleição histórica e um momento decisivo na política", disse Mary Lou McDonald. "O Brexit mudou o panorama político na Irlanda, no Reino Unido e na Europa. Todas as velhas certezas desapareceram. É agora impossível ignorar a exigência crescente de um referendo sobre a unidade irlandesa."

Tal como na Escócia, a Irlanda do Norte votou pela permanência do Reino Unido na UE no referendo de junho de 2016 (55,8% contra 44,2%).

Por outro lado, o Acordo de Sexta-Feira Santa reconhece "a legitimidade de qualquer escolha livremente exercida por uma maioria da população da Irlanda do Norte em relação ao seu estatuto, se preferem continuar a apoiar a União com a Grã-Bretanha ou uma Irlanda soberana e unida" e prevê, no anexo do acordo, que cabe ao ministro para a Irlanda do Norte convocar um referendo "se em qualquer momento lhe parecer provável que uma maioria dos votantes exprima o desejo de que a Irlanda do Norte cesse de fazer parte do Reino Unido e passe a fazer parte de uma Irlanda unida".

Para Mary Lou McDonald, os resultados das eleições são esse indicador, algo que é recusado pelo DUP, até porque em termos percentuais os partidos unionistas alcançaram 1,1% do voto total, contra 1% dos nacionalistas.

Também o ministro irlandês Simon Coveney não crê que o momento seja para avançar com a unificação irlandesa. "Não é uma discussão útil neste momento", disse.

Caso o governo regresse a exercer funções dentro do prazo, as eleições na Irlanda do Norte decorrem em 2022. Nessa altura, poderá haver um aumento de votos nos partidos nacionalistas se a divisão do voto entre católicos e protestantes permanecer. À BBC, o perito em monitorização do processo de paz Paul Nolan afirmou que é bastante provável que em 2021 o número de católicos supere o de protestantes. No censo de 2011, a população que se afirma protestante era de 48% e a católica 45%. "Vamos estar na situação irónica do centenário do Estado com uma maioria católica", disse Nolan.

Na sequência da Guerra Anglo-Irlandesa de 1919, os britânicos cederam o sul da ilha aos irlandeses, mas mantiveram o controlo do norte, que permaneceu parte do Reino Unido. No entanto, a população do norte também se dividiu entre os unionistas, maioritariamente protestantes; e os nacionalistas ou republicanos, maioritariamente católicos, que desejam a união com o sul. Quando a Irlanda do Norte foi estabelecida, a maioria da população era protestante.

As tensões entre as duas comunidades descambaram em violência sectária de parte a parte, desde os anos 60 até ao acordo de paz de 1998 (e ainda depois), tendo resultado em milhares de mortos - uma ferida aberta no Reino Unido.

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