Irá Trump salvar o euro?

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O euro tem a sua integridade ameaçada por contradições internas que as autoridades europeias têm sido incapazes de resolver, teimando em ignorar o elefante no meio da sala. Por muito paradoxal que seja, o detestado presidente americano pode tornar-se o improvável herói que salva a Europa da sua autodestruição.

O primeiro passo nesse sentido foi dado por um seu responsável de política comercial, Sr. Peter Navarro, que, na semana passada, acusou publicamente a Alemanha de, com o seu crescente superavit externo, ser um desestabilizador económico europeu e mundial. E de ser o principal obstáculo ao acordo transatlântico conhecido por TTIP. Mais especificamente, o Sr. Navarro disse que a Alemanha "continua a explorar outros países na UE, assim como os EUA, com um "implícito marco alemão" grosseiramente subvalorizado". E acrescentou que "o desequilíbrio estrutural alemão no comércio externo com o resto da UE e os EUA sublinha a heterogeneidade económica dentro da UE - logo, isto [o TTIP] é um acordo multilateral sob as vestes de bilateral".

Goste-se ou não da administração Trump, o facto é que, neste caso, está absolutamente certa e foi posto o dedo na ferida que ameaça desfazer a zona euro e que as autoridades europeias têm, num excesso de indevida cortesia, sistematicamente descurado.

Estou convencido de que, por estranho que possa parecer, a situação criada nem sequer é do agrado da Alemanha e que esta a sustenta por devoção ao euro. Mas o facto é que a Alemanha é um problema para o euro, assim como o euro é um problema para a Alemanha.

É um problema para o euro, porque o seu excedente externo não permitiu, nem permite, que a cotação da moeda comum tivesse depreciado o necessário para atrair a procura externa aos países deficitários, que tiveram de contrair fortemente a sua procura interna, suavizando os duros ajustamentos. Estes foram, desse modo, forçadamente deflacionários e desnecessariamente recessivos.

E o euro é um problema para a Alemanha, porque a fraqueza económica dos demais não permite que o euro aprecie o necessário para reflectir a sua sobrecapacidade competitiva, desfazer o excedente e reequilibrar a estrutura da economia. Como acontecia antes do euro e se traduziu nas múltiplas revalorizações do marco alemão, que foram o recorrente mecanismo com que essa sobrecapacidade era regularmente reflectida na taxa de câmbio. Sem ele, a Alemanha não sabe resolver os excedentes comerciais e torna-se a referida ameaça à estabilidade. E, não sabendo resolver o seu problema, culpa os demais, apesar de estes, entretanto, terem eliminado duramente os seus défices externos.

Este colete-de-forças em que a Alemanha se meteu, e por arrasto mete todos os seus parceiros da união monetária, é resultado do seu quadro conceptual sobre o funcionamento da economia e da inconsistência deste quadro com os requisitos de uma união monetária. Tal quadro impede--a, nomeadamente, de combater o excedente com o simétrico da desvalorização interna exigida aos países externamente deficitários para resolverem os seus défices. Sem essa simetria, a única forma de reajustar os preços relativos entre as várias economias (i.e., as suas taxas de câmbio reais que são, grosso modo, as taxas de câmbio nominais, neste caso fixas, corrigidas pelas diferença dos níveis de preços) é através de uma deflação generalizada, potencialmente catastrófica (como mostrou a experiência dos anos 1930).

Se a Alemanha não mudar as suas crenças económicas - e não perceber que elas só são compatíveis com a posse de uma moeda própria que possa revalorizar-se -, o euro constituirá duradouramente um forte travão ao potencial de crescimento europeu e um factor de divergência económica. E aquele país continuará a ver aumentar o excedente externo com o resto do mundo, o que não poderá deixar de ser visto com preocupação pelos demais países. Como agora se viu com esta reacção americana que, vinda de onde vem, e apesar de vir de quem vem, não deixará de ter sérias implicações.

Será esta situação politicamente sustentável na Europa? E até quando? Estas são as duas grandes questões com que nos vamos (continuar a) confrontar nos próximos tempos e que, directamente ou por interpostos disfarces ideológicos, irão marcar o curso político na Europa.

É possível que a invectiva americana contra a Alemanha acelere esse debate e force as autoridades europeias a tirar a cabeça da areia e enfrentar decididamente o problema. Ou a Alemanha substitui a procura externa, de que depende, por procura interna, que se transforme em procura externa para os outros; ou a sustentabilidade do euro requer a institucionalização de mecanismos de transferência que reciclem internamente esses excedentes.

Se isso acontecer, por influência americana, o presidente Trump poderá vir a emular o herói da lenda frígia e quebrar o nó górdio que os europeus enrolaram à sua própria volta e não conseguem desatar. Tornar-se-ia deste modo, involuntariamente, um promotor do fortalecimento da Europa.

Será? A história às vezes tem destes paradoxos.

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