Irá Portugal exportar a geringonça?

Publicado a
Atualizado a

A primeira vez que li a palavra geringonça, achei que era um digestivo. Estive quase para perguntar ao empregado de mesa: "Com o café, pode trazer-me uma geringonça?" O ridículo não mata. Dias depois, apercebi-me do sentido da palavra: afinal, tratava-se de qualificar o acordo de 2015 entre os socialistas e a extrema-esquerda. Uma aliança que, segundo os meus amigos portugueses de direita, não iria durar mais de alguns meses e pior, diziam eles, por causa da geringonça o FMI iria voltar em breve a Portugal. Afinal, não sou o único a falhar nas apostas.

Rapidamente, para falar desta aliança na comunicação social francesa, foi preciso encontrar a tradução da palavra geringonça. Gadget? Bidule? E qual foi a minha surpresa quando ouvi há dias Benoît Hamon, o candidato socialista nas eleições presidenciais francesas, usar a palavra brinquebalant. Tradução certa ou errada? Pouco importa. O que importa é que os conselheiros do candidato oficial do PS fizeram o trabalho de casa para ele falar da geringonça aquando da sua visita a Portugal.

Portugal exporta sapatos, cortiça, pastéis de nata. E porque não a geringonça? António Costa deve pensar que é um génio. Não só calou muitas bocas em Portugal, que lhe davam seis meses no poder, como até há pessoas que vêm de fora para lhe pedir conselhos. De facto, o estado da política atual do PS português é de fazer inveja ao PS francês. As sondagens dão quase a maioria absoluta aos socialistas portugueses, enquanto Benoît Hamon, nas presidenciais, não passa neste momento dos 14%, ou seja, ficaria apenas na quarta posição.

A escolha de Portugal como primeiro país estrangeiro a ser visitado pelo candidato dos socialistas franceses não nasce do acaso. Benoît Hamon sabe que sem uma aliança das esquerdas, será quase impossível passar da primeira fase. Sabe que o melhor para ele seria conseguir um acordo com Jean-Luc Melenchon, o candidato da extrema-esquerda. Só que, na política, os egos mandam e nenhum deles quererá desistir a favor do outro. Sobretudo porque o argumento de Hamon, considerando que é o mais bem colocado nas sondagens, tem os seus limites. Hamon tem apenas três pontos de vantagem sobre Melenchon. E a verdade no dia de uma sondagem pode não ser a verdade do dia seguinte.

Afinal, que dicas pode ter dado António Costa ao seu colega francês? A situação entre os dois países não tem rigorosamente nada em comum. Em Portugal, os socialistas conseguiram um acordo pós-eleitoral, enquanto em França o acordo terá de ser alcançado antes da eleição. O que teria acontecido se António Costa tivesse telefonado a Jerónimo de Sousa antes das legislativas para lhe dizer: "Olá, Jerónimo! Faz-me um favor, preciso que desistas para que a esquerda possa ganhar as eleições." Impossível. A geringonça só podia ter acontecido depois e nunca antes - lá está, como um digestivo...

A situação também não é a mesma tendo em conta a bipolarização da vida política portuguesa. Nas três últimas legislativas, o conjunto dos votos do PS e do PSD superou os 65%. Impensável em França, onde, por enquanto, nas sondagens para as presidenciais, há cinco candidatos com mais de 10% dos votos. E com apenas 19%, Emmanuel Macron, o candidato da esquerda liberal, tem hipóteses de passar à segunda volta e até ser eleito presidente.

Se eu estivesse no lugar de Benoît Hamon, o único conselho que teria pedido a António Costa seria no sentido de perceber como é que se tornou um estratega tão hábil. Em três anos, conseguiu eliminar o seu adversário no PS, António José Seguro, chegar ao poder com a tal geringonça, que Passos Coelho caísse nas sondagens, o apoio de Marcelo Rebelo de Sousa e, cereja no topo do bolo, pode conseguir que nas próximas legislativas nem venha a precisar de nova geringonça. António Costa, "o bruxo da política portuguesa".

Benoît Hamon, o candidato dos socialistas franceses, também foi influenciado por outro "bruxo da política", François Mitterrand, que toda a vida fez e desfez alianças. A geringonça é uma arte bem mais subtil do que parece. Um digestivo requintado.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt