Ir às Selvagens e não ficar por cagarras (Episódio 31)
Andou o Presidente Marcelo por terras nunca dantes pisadas por um PR. E, claro, disse-o: "Um Presidente da República tinha de ir às Desertas." Não falava de si próprio, como Quim Berto, o grande futebolista que nunca se esquecia de si nas entrevistas: "O Quim Berto está muito contente por vir para Alvalade." Embora fosse verdade, também, que Marcelo, ele, nunca fora às Desertas. Mas a frase referia uma ausência desde Teófilo Braga e até de todos os chefes de Estado que entroncavam na árvore plantada por Afonso Henriques.
E falou bem, Marcelo. Porque logo as caixas de comentários dos jornais se encheram de reparos: "O primeiro?! Então Cavaco não foi lá?" Ora, Cavaco e Sampaio e Soares já tinham estado era nas Selvagens, que são também madeirenses, mas não são as Desertas. Quando, os territórios nacionais se confundem há que pisá-los.
Marcelo foi de bote às Desertas, fazia mau tempo e os jornalistas tiveram de esperar na fragata. Quando voltou, contou-lhes que viu duas almas-negras. Uma rainha inglesa teria de dizer que vira duas Bulwer"s petrels, duas pardelas de Bulwer, um nome comum e a marca do cientista que a catalogou, James Bulwer. Quando este andou pela Madeira, em 1825, a autoridade mais importante do Funchal era o cônsul inglês. Foi há muito, é certo, mas com isto de ilhas e arquipélagos é sempre avisado lançar consecutivas amarras e âncoras. Além de que um pássaro que só nidifica nos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde - os arquipélagos do Atlântico Norte descobertos pelos portugueses - merece ser conhecido por alma-negra, que soa a fado de Amália.
A fragata chamava-se D. Francisco de Almeida e o nome também contava. Primeiro vice-rei da Índia, por lá andou e, na volta, morreu no cabo da Boa Esperança quando a nau fazia aguada. Ir para as Índias e acabar no cabo da Boa Esperança, há marcos que vão para lá dos homens e os colam a um destino nacional. Destino onde o arquipélago da Madeira era porto - o Presidente deve ter falado destas coisas com um dos governantes que o acompanharam na fragata, o secretário de Estado da Defesa, Marcos Perestrello. Talvez plebeu, que importa, mas patronímico suficiente para lembrar que o primeiro senhor da capitania de Porto Santo foi Bartolomeu Perestrelo, sogro de Cristóvão Colombo.
Por falar em Colombo, chegou-se, no dia seguinte e de helicóptero, às Selvagens. O Funchal, a 280 km, as Canárias, a 165 km: entende-se porque era preciso ir lá muito... Fazer prova de vida, "marcar", disse Marcelo. Duas ilhas, Selvagem Grande e Selvagem Pequena. Quem as batizou, Diogo Gomes, só tem uma estátua no mundo: na cidade da Praia, Cabo Verde, arquipélago que descobriu. Estão a ver como isto faz um conjunto com lógica? Não são só voos de almas-negras, mas viagens marítimas.
Nas Selvagens, o que lhes falta de gente, abunda em indicações para as pessoas: Ponta do Risco, Ponta do Inferno, Ponta do Leste, Ponta do Norte - tinham de ser práticos, os marinheiros. Muitos ilhéus, também com batismos descritivos: ilhéu Redondo, ilhéu Comprido, ilhéu do Sul... O redundante ilhéu Pequeno e até o contraditório ilhéu Grande... E para mostrar como isto está mesmo, mesmo, tudo ligado, voltemos à estátua na cidade da Praia, que evoca o país onde um jornal, um dia, com a beleza da contradição de um ilhéu Grande, titulou: "Ontem chuviscou torrencialmente."
[destaque:Marcelo sentiu tão grande o apelo das palavras, que pediu papel e caneta. Um postal para Costa e mais sete, para presidentes de câmara e de junta de freguesia. Ideia estranha...]
Então, nas Selvagens, Marcelo Rebelo de Sousa sentiu tão grande o apelo das palavras, que pediu papel e caneta. Mandou um postal ao primeiro-ministro António Costa: "Convido-o a visitar as Selvagens." Era convite e muito mais. Enviado do lugar que mais nos alarga (a zona económica exclusiva), assim tenhamos unhas para o tocar. Essa grandeza sublinha o gesto. Que gesto? Simples, o PR podia ter-se esquecido do PM, seria tão simples, tão inócuo, tão normal... Só que não aconteceu. E, depois, os que não sabem ver dizem que nada acontece ao país.
Um postal para Costa e mais sete, para presidentes de câmara e de junta de freguesia. Ideia estranha... Ou, outra vez, simplesmente um Presidente dos portugueses que lê as duas palavras depois da que tem capitular: "Dos portugueses." Poderemos todos inventar qual a mensagem e os destinatários. "Caro Ricardo Figueiredo, presidente da Câmara de São João da Madeira, o mais pequeno concelho português, saudações do lugar que nos faz grandes - Marcelo, Selvagens." Ou "caro Manuel Batista, presidente de Melgaço, o mais a norte, o nosso abraço mais sulista..." Ou "caro Artur Nunes, presidente de Miranda do Douro, a mais longe da praia, saudações cercadas de mar..." Ou "caro José Silva, do despovoado Corvo, nem sabes quanto há Portugal ainda mais solitário..." Sintam-se abraçados todos os portugueses.
Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão:
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