Ir ao seu interior para escutar todo o universo
Viveu 60 anos na URSS, há 20 que vive na Alemanha, numa aldeiazinha perto de Hamburgo que escolheu pela tranquilidade e isolamento que ali podia ter e que, para ela, são pré-condição da criação.
Para uma compositora da mes- ma geração daqueles que, a Ociden- te, faziam as grandes revoluções musicais do segundo pós-guerra, viver na URSS era "muito adverso, pois o isolamento era absoluto. Só nos anos 60 isso foi um pouco mitigado: alguns estrangeiros iam à URSS e levavam consigo alguns discos e partituras da nova música que se fazia". Lembra-se que, mais tarde, "pessoas como Boulez e Stravinsky também lá foram e aí tivemos contacto directo com a vanguarda, porque lá era raríssimo tocar-se essa música". Mas houve um efeito paradoxalmente positivo, pois, "por serem tão raras, estudei as obras a que tive acesso muito intensivamente, quiçá mais do que se fosse uma ocidental - naquela negritude, eram clarões de grande intensidade".
Nega, porém, influências: "o trabalho dos outros sempre foi secundário, distanciei-me sempre no plano pessoal. O que me interessava, ao compor, era penetrar bem fundo em mim própria, conhecer--me bem: ai é que eu encontraria a minha voz". Distingue dois planos na vida: "um de communio com os outros homens, de comunicação e aquisição de conhecimento, e outro de introspecção, solidão, onde estou entregue a mim própria, como se nada mais existisse". Aí, diz, "escuto-me, perscruto até ao âmago do Som e tenho, quem sabe, a possibilidade de escutar o Universo".
Os estilos de outros usa-os "como meros exercícios, nunca para imitar", e aí tem especial relevância um específico: "o estilo polifónico do Renascimento: Obrecht, Ockeghem, Josquin, Palestrina", mais o que dele existe em (claro...) J. S. Bach. Dos procedimentos destes autores destaca "as proporções numéricas, que me influenciam quando penso as minhas obras formal e ritmicamente". Destaca "as cláusulas cadenciais", que compara a "pontos de encontro", "pontos culminantes e decisivos da organização formal" e a "nós arquitectónicos". Neles se articulam as proporções, de uma for- ma que qualifica de "fantástica e incrível"[n. d. r.: ela já fez as contas a todas essas proporções e explicou e apontou no nosso bloco várias delas, segundo o seu método pessoal de análise...].
Enquanto artista, a sua posição difere muito do isolacionismo de certas vanguardas, de que foi émulo Milton Babbitt, recentemente falecido: "a actividade criadora deve ter um efeito no espaço-tempo, pois só há verdadeira epifania de arte quando a substância musical entra em confronto com o intérprete e, através da 'apresentação' que este faz, com o ouvinte". Por isso é que "só no evento-concerto é que a obra musical se realiza e adquire vida plena". Compara este processo a "um movimento de almas", ele próprio "retroacção in situ da dádiva de arte" e "vibração do espírito".
Compositora. E mulher. Porém, confessa, "na URSS nunca senti problemas por isso. Só interessavam as nossas convicções ideológicas conformes (ou não). Era uma sociedade escravizante, horrível, mas na formação havia pontos positivos. Sentia-me oprimida, mas não devido ao meu género".
Recusa a etiqueta "ritualística" aplicada à sua música: "não tenho essa desfaçatez! Essa palavra vai para além do facto- -na-música. É minha convicção que a arte efectua uma re-ligio, mas não pretendo que a minha música seja ritualisada", explica. A re-ligio está lá "como alusão, como imanência espiritual, apenas", feita parcialmente visível "na concretização da forma, daqueles 'nós' de que falei".
Se a sua música marca quem a ouve, é "dífícil dizer. Não penso nisso. Às vezes 'chegamos', outras não. Mas isso são coisas demasiado concretas e prosaicas. Se pusesse intenções e preocupações com isto e aquilo no acto de compor, nunca conseguiria escrever nada!"