Invasão
Muito por culpa d'A Guerra dos Mundos de H.G. Wells (publicado em 1898), a ficção científica habituou-se a usar os extraterrestres como maus da fita. Desconhecidos, potencialmente virulentos (e sem vacina conhecida), inesperados, invadiram-nos vezes sem conta e mataram mais gente que a peste negra. Houve contudo excepções, e Steven Spielberg protagonizou duas das mais célebres visitas "benignas". Em 1977, em Encontros Imediatos de Terceiro Grau, fez dos aliens antropólogos siderais, que depois da recolha de dados e estudo (leia-se rapto), devolveram as cobaias a casa. Em 1982, ET era um botânico curioso cuja atracção pelas luzes de uma cidade o fez perder a nave em fuga quando os "maus" (neste caso os homens), descobriram que havia ovni por perto... Desta feita, contudo, não há meiguice nos extraterrestres de Spielberg. São os herdeiros dos marcianos de Wells e usam a velha máxima do Oeste atirar primeiro, fazer as perguntas depois.
Pensado como um encontro entre a essência do romance de H.G. Wells e um sentimento de ansiedade perante o perigo iminente característico da América do pós-11 de Setembro, A Guerra dos Mundos reinventa o filme-catástrofe em clima de ficção científica, mas junta-lhe uma dimensão humana, familiar (novamente em registo disfuncional, tipicamente spielberguiano). Trabalhado em absoluto secretismo em apenas dez meses (ninguém viu as máquinas alienígenas durante a produção, nem mesmo os actores), nasceu de um parto invulgarmente rápido para um blockbuster. Spielberg e Tom Cruise desejavam fazer este filme há muito, e, num futuro entre compromissos, avançaram, seguros das potencialidades do trabalho da ILM no desenho dos efeitos digitais fundamentais à pretendida verosimilhança da invasão. Do livro de Wells aceita-se a ideia de colocar os invasores em tripods (tripés não será uma tradução atraente). E do filme de 1953 (ver rodapé), assimilam-se algumas imagens (nomeadamente a sonda que entra pela cave ou a forma como a mão do alien cai da sua nave antes de morrer, na sequência final) e até mesmo actores, já que os avós da pequena Rachel (Dakota Fanning) não são mais que os actores protagonistas na adaptação de Byron Haskin. Não explicitando nunca a proveniência dos extra-terrestres (sabemos apenas que são implacáveis), Spielberg não resistiu no entanto a mostrá-los em duas cenas, revelando os galácticos do raio laser umas formas que lembram os mafarricos de O Dia da Independência. O filme tem, contudo, o mérito de não usar generais medalhados a dizer como se mata o bicho, nem rebenta com Arcos do Triunfo, Big Bens, Empire States ou Torres de Belém. A acção decorre entre Newark e Boston, entre gente comum (podia ser qualquer um de nós) e ocasional tropa feita guerrilha desnorteada.
Esta é a segunda adaptação de A Guerra dos Mundos ao cinema, mas na verdade a sua quinta incarnação artística. Publicado depois de outros romances de Wells que o tempo transformaria em clássicos como A Máquina do Tempo (1895) ou O Homem Invisível (1897), A Guerra dos Mundos captava um sentido de curiosidade sobre Marte levantado pelas então recentes observações de Percival Lowell (que no planeta julgara identificar canais artificiais), mas transformava a primeira visita dos vizinhos numa invasão, experiência relatada por um observador devastado pela forma como os extra-terrestres derrotam a cavalaria e artilharia inglesas. Sem resposta tecnológica ou militar, a humanidade acabaria salva pela falta de resistências dos marcianos aos micro-organismos que connosco convivem no ar e água.
A Guerra dos Mundos, best- -seller imediato para H.G. Wells, conheceu novas revisões em sucessivas operações de reinvenção do texto original com Orson Welles na rádio, Byron Haskin no cinema e Jeff Wayne em disco (ver rodapé). A emissão aterrorizadora de Wells semeou numa futura geração de realizadores e patrões de estúdios uma vontade em aproveitar o potencial dramático das invasões de extraterrestres, com a consequente explosão de produções cinematográficas na década de 50 - títulos como Invaders From Mars (1953), It Came From Outer Space (1953) ou It! The Terror From Beyond Space (1958) são alguns exemplos - frequentemente com subtexto anti-comunista. O mais recente e hilariante Marte Ataca! (Tim Burton, 1996) parodiou e homenageou este importante filão, um dos mais suculentos na história da ficção científica.