Intolerância
Sinal dos tempos, ou de todos os tempos, a religião continua a ser um factor de clivagem e um pretexto de confronto social. O mundo andou demasiadas vezes em guerra religiosa. Dir-se-á, e com fundamento, que a religião é também pólo de união e de apaziguamento. É verdade. Mas não raro um desenho ou meia dúzia de palavras incendeiam sensibilidades e ortodoxias. Foi o que aconteceu agora com o Papa Bento XVI numa visita à Alemanha. Aí recuperou um diálogo entre um imperador bizantino e um sábio persa em que se criticava a violência da fé muçulmana. A citação histórica presta-se a interpretações ambíguas. Desde logo porque identifica islão com violência, o que não é desajustado de alguns capítulos da História, mas não é exclusivo de nenhuma religião. O catolicismo deu os seus contributos para a infâmia e nem por isso terá de ser identificado como uma instituição delinquente.
O grande problema contemporâneo é o confronto com a racionalidade. E neste desafio há interpretações religiosas com mais dificuldade em exercitar a razão e assumir as consequências da liberdade e da tolerância. O islamismo está ainda longe da secularização ocidental e vive contradições nem sempre pacíficas. Mas se Bento XVI pensa que o acicatar de sensibilidades de fé contribui para a tolerância que reclama engana-se.
A percepção da fé conduz os fiéis a um entendimento da racionalidade que ultrapassa a razão. E muitas vezes à rejeição de qualquer outra racionalidade. A palavra trai muitas vezes. E quando confrontamos palavras, elas nem sempre fazem justiça a quem as profere ou a quem se dirigem. Há dois anos, o então cardeal Joseph Ratzinger reclamava legitimamente o respeito pelo sagrado, "o respeito em relação àquilo que, para o outro, é sagrado". Dizia então: "Graças a Deus que na nossa sociedade actual é penalizado quem desonra a fé de Israel, a sua imagem de Deus, as suas grandes figuras. Também é multado todo aquele que ofende o Alcorão e as convicções de fundo do islão. Mas onde, pelo contrário, se trata de Cristo e daquilo que é sagrado para os cristãos, então é a liberdade de opinião que aparece como bem supremo, e limitá-lo seria uma ameaça ou até a destruição da tolerância e da liberdade em geral." Esta quase lamentação por um alegado menor respeito pela cristandade diz bem dos conflitos que muitos vaticinam conduzirem a mais uma guerra de religiões. Bento XVI pode ter deitado uma acha para a fogueira da intolerância, mas usufruiu de uma liberdade, que nem sempre o catolicismo respeitou. Critique-se a falta de sensibilidade. Elogie-se o inalienável direito ao exercício da razão. Até porque o mundo está cheio e farto de tutelas de irracionalidade e intolerância.