Inteligência singular, paixão pela vida
Acabei de ter conhecimento da morte de Paulo Varela Gomes. Nem sei o que dizer. Conheci o Paulo faz umas boas três décadas, e como creio que sucedeu com todos aqueles que tiveram o privilégio de conviver com aquela inteligência brilhante como poucas, para não dizer única, livre e profundamente criativa, de que de todos os nossos convívios e encontros guardo recordações imensas. A sua figura marcou-nos muito. Estou certo que a sua riqueza reflete o número de depoimentos diversos sobre a sua pessoa.
Vou tentar reduzir-me apenas a um das suas múltiplas facetas, a do campo da história da Arte onde o seu legado é enorme.
Conheci o Paulo, através de Vítor Serrão, como o homem apaixonado pela figura de William Beckford e o impacto que teve a ida do aristocrata exilado em Portugal ao Mosteiro da Batalha e a repercussão operada na arquitetura europeia do final do século XVIII. O Paulo apaixonado pela obra de Angelika Kauffmann, que tanto marcaria o nosso Vieira Lusitano e o mundo do neoclássico de expressão inglês que o entusiasmou como a ninguém. A sua preocupação de integrar a cultura artística portuguesa na Europa do seu tempo foi sempre uma características da sua produção cientifica. Para mim foi ai sempre um pioneiro.
Conheci o Paulo da cultura e arquitetura do século XVIII com um sempre vigoroso entusiasmo por Frederico Ludovice, o arquiteto de D. João V, e a sua preocupação para o reposicionar no debate em torno da autoria final da Capela de S. João Baptista. Conheci o Paulo apaixonado por Malta e a sua arquitetura e urbanismo setecentista. Paixão certamente correspondida por quando ai estive em 1993 para um congresso, em que era sem dúvida depois dos Grão-Mestres Manuel de Vilhena e Pinto da Fonseca o português mais apreciado e celebrado.
Conheci o Paulo que, com a Patrícia, parte para Goa, para poder trabalhar no que realmente lhe importava, sempre em torno do nosso património, como delegado da Fundação Oriente e onde realizou uma notável ação cultural. A sua análise critica - que posso testemunhar pouco após ter chegado quando nos encontramos na Índia - compreendeu o espaço e a influencia da presença portuguesa de um modo brilhante, naturalmente inovador, como em todas as suas reflexões. Muito espelhada na sua notável obra recentemente editada Era uma vez em Goa onde, para quem o conheceu, reflete muitas das ideias com que nos enriquecia.
Para além de um orador bafejado pela notoriedade, Paulo Varela Gomes escreveu admiravelmente. Mais recentemente deixou-nos um conjunto de livros de primeiro plano, não obras de história de arte, a que dedicou toda a sua carreira, mas novelas.
Neste momento já muitos citaram "O Verão de 2012" sobre a doença que o levou, "Hotel", obra vencedora do Prémio P.E.N. Clube Português, "Era uma vez em Goa" e mais recentemente "Passos Perdidos". Guardei esta última para ler mais tarde. Fiz bem.
Sei que escrevo ainda sob a notícia que me chegou, apenas gostaria de testemunhar um homem integro, generoso, de uma lucidez e inteligência verdadeiramente singulares e uma paixão pela vida a todos os níveis exemplar. Conservo de cada momento que partilhei com ele uma enorme saudade. Nunca cedeu ao provincianismo que a História da Arte caíra quando iniciou a sua carreira. Sempre projetou a cultura portuguesa internacionalmente. Foi sempre um entusiasta. Vai-nos fazer muito falta.
*Historiador de Arte e diretor adjunto da Fundação Calouste Gulbenkian