Instabilidade. Uma palavra que resume o ano político em Portugal

Os investigadores André Freira e Paula do Espírito Santo aceitaram o desafio do DN para encontrarem as palavras marcantes que culminaram com a demissão de António Costa. Sugeriram várias, mas ambos coincidiram numa que dominou tudo.
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"Demissão. Esta palavra acaba por ser o desencadear de tudo", destaca a professora de ciência política no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa, Paula do Espírito Santo, justificando que "desencadeia um novo ciclo, a nível eleitoral, mas também uma fase nova no plano da oferta eleitoral, dado que temos agora uma nova coligação, de certa forma recauchutada".

Paula do Espírito Santos respondeu ao desafio do DN de eleger três palavras que resumissem um ano inteiro de casos, contestações, saídas, substituições, comissões parlamentares de inquérito, indemnizações e opacidade.

"Demissão" surge assim como uma referência direta à opção do primeiro-ministro António Costa de sair do Governo. Na altura, a 7 de novembro, alegou que o fez por um comunicado da Procuradoria-Geral da República referir que o seu nome surge numa indiciação do Ministério Público, implicando algumas pessoas próximas de si em negócios relacionados com o lítio e hidrogénio. Mas o próprio primeiro-ministro não foi constituído arguido. De qualquer forma, esta foi a pedrada no charco que agitaria as águas.

Com a demissão de António Costa, o Presidente da República, Marcelo Rebelo, decidiu dissolver a Assembleia da República e convocar, para 10 de março de 2024, novas eleições legislativas. Com a corrida às urnas agendada, perfilam-se os mesmos atores políticos, ainda que com novas alianças.

A investigadora do ISCSP, quando referiu a coligação "recauchutada", lembrou a Aliança Democrática, que já tinha existido pela mão de Francisco Sá Carneiro, e que agora juntará PSD e CDS no mesmo lado da trincheira nas legislativas. No entanto, surge também um novo dado: "não se vislumbra que venha a haver uma maioria absoluta, ou pelo menos condições de governabilidade que dependam de fatores aritméticos que tenham a ver com um só partido", vinca Paula do Espírito Santo. "No fundo vai ter que haver negociação por parte de um dos grandes partidos", remata.

A investigadora avisa "que podemos entrar agora numa fase de maior oferta em termos eleitorais e de novos desafios que se podem colocar à democracia, tendo em conta um hipotético crescimento do Chega, que pode fazer aqui uma diferença importante, não só no jogo político e parlamentar, mas eventualmente também até no plano da governação, se houver aqui algum tipo de abertura por parte do PSD". Com tudo isto, Paula do Espírito Santo propõe que à "demissão" se associe "as palavras instabilidade, e crise".

É neste ponto que se cruzam as opiniões dos investigadores. "A instabilidade não começou só agora com este problema da operação Influencer [processo que levou à demissão do primeiro-ministro]", defende ao DN o professor catedrático de ciência política no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, André Freire. "A instabilidade começou antes, logo no início, em 2022, porque, com ministros suspeitos de corrupção, casos de nepotismo, de clientelismo, de favorecimentos e com demissões de secretários de Estado, havia uma instabilidade que vinha de dentro", explica.

A perspetiva de André Freira encontra-se com a de Paula do Espírito Santo nesta palavra e em todas as consequências da demissão do primeiro-ministro, no entanto, o destaque do investigador do ISCTE vai para um fenómeno anterior: "a maioria absoluta" conseguida por António Costa. Optando por expressões compostas, André Freire destaca ainda, para além da "maioria absoluta", "tráfico de influências" como um dos pontos que marcaram o ano.

"É uma suspeita que está levantada pelo Poder Judicial, mas que já tinha sido levantada nos casos anteriores de instabilidade", considera, acrescentando que há "uma suspeita no ar de relações muito fáceis com os grandes negócios, quer dizer, de facilitação, porventura com boas e justificadas razões ou nobres intenções [...] de que o Governo socialista de maioria absoluta é amigo dos grandes negócios". "É claro que um governo tem que trazer negócios e investimentos para o país, mas se isso é feito à custa de sermos o país dos baixos impostos para os estrangeiros, mas não para os portugueses, e que estamos dispostos a alterar as nossas leis e os nossos modos de vida, proteção ambiental e outras coisas, feitaspara ter que trazer esses negócios, temos um problema", avisa.

Como última expressão que surge como corolário de um ano político, André Freire propõe "desvalorização salarial". "Houve aumentos, por vezes, acima da inflação, para o salário mínimo e para os salários mais baixos, mas os salários, por exemplo, das profissões científicas e técnicas - que é isso que são as classes médias - subiram sempre abaixo da inflação. Isto chama-se, na minha terra, desvalorização salarial. Portanto, há aqui uma marca de prometer uma coisa e fazer outra", conclui.

vitor.cordeiro@dn.pt

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