Inspeção da Saúde vai investigar recusa de medicamento a crianças de Coimbra
A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) vai avançar com uma averiguação com o objetivo de esclarecer a situação de duas crianças de 13 e 14 anos - D. e Mário, vamos tratá-las assim -, que continuam sem poder ser tratadas com o medicamento Emicizumab, aprovado pelo Infarmed em fevereiro deste ano, especificamente para a doença de que sofrem, Hemofilia A grave. O medicamento foi-lhes recusado por decisão do conselho de administração do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) que cessou funções a 1 de novembro deste ano.
O hospital fundamentou a sua decisão num protocolo que aprovou, após a prescrição do fármaco às crianças pela médica que os acompanha desde pequenos, especialista em doenças raras, nomeadamente na área do sangue. Os familiares das crianças souberam da decisão do CHUC pela médica e mais de três meses depois do pedido do fármaco, e estranharam, porque "há outras crianças mais novas e mais velhas no hospital que já estão a fazer o medicamento", disse ao DN Andreia Figueiredo, mãe de D, quando nos contou a história do filho.
"Não se percebe, recusarem um medicamento que pode melhorar a qualidade de vida do meu filho, porque é prescrito por determinada médica? Como mãe, não posso aceitar isso. É uma médica especialista e graduada, que sempre acompanhou o D e tem estado sempre ao nosso lado", sublinhou.
O irmão de Mário argumentou o mesmo ao DN. Ambos expuseram o assunto ao hospital e solicitaram que o fármaco fosse ministrado às crianças, mas até agora não obtiveram resposta.
O DN divulgou este caso na sua edição de 2 dezembro. O CHUC recusou o medicamento, considerado "extraordinário" no tratamento da Hemofilia A grave, com base num protocolo que foi proposto pelos diretores do Serviço de Sangue e Medicina Transfusional e do Centro de Referência de Coagulopatias Congénitas - já após a prescrição do medicamento por parte da médica que acompanha as duas crianças (a 4 e 23 de abril, dias da consulta) - e aprovado pela administração do CHUC a 25 de maio, com parecer favorável da Comissão de Farmácia e Terapêutica.
O protocolo proíbe que este medicamento, cujo custo de ministração a cada uma das crianças deve rondar os 190 mil euros/ano, seja prescrito por médicos que não integrem o centro de referência, que é o caso da médica destas crianças. A questão, alerta o seu advogado, "é que foi o currículo e a vasta experiência de Maria (a médica), sobretudo na idade pediátrica, que permitiram a criação deste centro, porque, na altura, não havia mais ninguém com as competências dela no serviço". Ou seja, "ela foi retirada do centro, mas, se não fosse ela, o centro não existia. É uma médica especialista e com todas as competências para tratar estas crianças e prescrever este medicamento", reforça.
A situação já suscitou várias reações. O bastonário dos médicos solicitou esclarecimentos ao Conselho de Administração do CHUC, às direções clínicas e do Centro de Referência de Coagulopatias para saber se haveria eventual matéria para análise no Conselho Disciplinar. O presidente da Secção Regional do Centro também já tomou posição, dizendo ao DN que "a saúde das crianças não pode ser prejudicada por desentendimentos com administrações ou médicos".
Agora, é a vez da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) informar que vai avançar com uma averiguação com o objetivo de esclarecer a situação e proporcionar às crianças os cuidados devidos. Em resposta à questão do DN sobre se iria atuar nesta situação - como fez em relação a outras, nomeadamente no caso das gémeas brasileiras tratadas no Hospital Santa Maria, contra a decisão técnica dos médicos e com um custo de quatro milhões de euros para o SNS - a IGAS informou ontem que "determinou a abertura de um processo de esclarecimento que tem como objeto a prestação de cuidados de saúde às duas crianças."
O DN enviou, há mais de duas semanas, várias questões ao novo conselho de administração do CHUC sobre a recusa do medicamento às duas crianças e sobre o caso de assédio que o advogado da médica diz que esta vem a ser alvo há mais de seis anos, mas até ontem não recebeu qualquer resposta.
No entanto, a administração do CHUC emitiu uma nota para as televisões, quando o trabalho do DN foi lançado, referindo: "Em relação ao caso noticiado, demonstramos total empatia para com as crianças e os seus pais. As crianças encontram-se a seguir o plano terapêutico de acordo com o protocolo aprovado e avaliação clínica. Os protocolos clínicos são reavaliados de acordo com a evidência clínica." A mesma resposta foi dada ao bastonário Carlos Cortes, que disse ao DN tê-la enviado para a Secção Regional do Centro para ser anexada ao processo que já existe sobre o assunto.
Os familiares das duas crianças estranham que, até ontem, a administração do hospital não tenha respondido ao pedido de explicações ou que ainda não os tenha chamado para os ouvir. "São duas crianças que estão a ser prejudicadas na sua qualidade de vida", disseram-nos. A mãe de D. conta que ele, com o medicamento que toma agora, "tem de se injetar três a quatro vezes por semana com Factor VIII; com o Emicizumab só faz uma injeção mensal".
Fonte próxima da médica das crianças afirmou ao DN que "o facto de a IGAS ir averiguar a situação é um sinal de que algo pode mudar para que as crianças possam ser tratadas com o melhor medicamento que existe no SNS para a sua doença. É isso que se espera".
A mesma reitera que a decisão do CHUC visa a médica, para que os doentes passem para outros colegas do centro, e isso "é assédio moral levado ao extremo", afirma o advogado do Sindicato dos Médicos do Centro que acompanha o caso. A situação já foi levada ao Tribunal do Trabalho, à Ordem dos Médicos e à própria IGAS. Na Justiça, chegaram a um acordo em 2020, que "não está a ser cumprido", afirma o jurista. Na Ordem, o caso foi arquivado ao fim de três anos, devido à Lei da Amnistia aprovada com a vinda do Papa a Portugal no verão. Da IGAS, nunca obteve resposta.
Segundo refere o hospital na resposta ao bastonário, "neste momento, o CHUC trata 20 crianças com hemofilia. O tratamento destas crianças obedece a um protocolo terapêutico aprovado pela respetiva Comissão de Farmácia e Terapêutica, sob proposta do Centro de Referência. Todos os doentes seguem este protocolo terapêutico. Das 20 crianças em seguimento, 14 encontram-se a receber tratamento com Fator VIII e seis Emicizumab".