INGLÊS COM SOTAQUE DO ALENTEJO
O romance parou. A letra miúda e certa vai até mais de meio da página formando frases e um sentido que ao longe não se adivinha. Não há uma rasura. Uns óculos de aros finos pousados em cima do papel indicam a pausa, o mesmo é dizer, a intenção de regresso. Robert Wilson está em pleno processo de escrita do quarto policial protagonizado pelo inspector sevilhano Javier Falcón, mas a paisagem que o envolve é a de montes sem uma casa à vista em plena Serra de Ossa, no Alentejo.
É meio de Outubro, mas o calor que se sente na rua à hora de almoço pede um mergulho na piscina. Wilson olha à volta. "No ano passado pensámos que íamos ficar sem nada. Tivemos de sair a correr porque o fogo estava a chegar." Olha e o que vê agora não é a paisagem de antes. São eucaliptos plantados de novo, pequenos, com chão negro ainda à vista. "Nessa altura sente-se um nó na garganta que parece que não vai desatar-se nunca. Impotência pura. É como se nos fossemos perder junto com o fogo."
Nas mãos tem a edição portuguesa de Assassinos Escondidos, o seu mais recente romance. É a primeira vez que o vê. Folheia e deixa correr as palavras que ele escreveu noutra língua. Lê-as pela primeira vez em português. Fala da capa. Diz que os ingleses não gostaram. "não sei se é por não perceberem a iconografia?!" Há uma cruz feita de pregos sob um fundo que se adivinha de azulejo. Olha mais uma vez e esquece. A cabeça já está no romance que se segue, o tal que parou para uma conversa. Ele que não gosta que seja sobre si, que prefere ir à mercearia da Aldeia da Serra, a localidade mais próxima, para escutar a admiração da dona: "O Senhor Roberto vai a Inglaterra como eu vou a Évora."; ele que fala português com sotaque do Alentejo, "rude", como lhe dizem os amigos de Lisboa; ele que por vezes se sente só no meio daqueles montes, mas que não os trocaria por nada; ele que dizem ser meio português ainda que se sinta de lugar nenhum. "Não posso ser português quando escrevo e penso em inglês." E a identidade não se dissocia da língua
Filho de um militar da força aérea, habitou-se a não ter terra. Viveu e trabalhou dez anos em Londres, estudou em Oxford, andou por África, América, Índia e chegou à Península Ibérica de bicicleta. Tinha 27 anos e aprendeu espanhol com amigos. Pouco depois estava em Portugal. Instalou-se em Sintra e de lá mudou-se para o Alentejo com a mulher, Jane. Se tiver de se definir dirá que é um viajante e prefere sempre um copo e dois dedos de conversa com um vizinho ou os amigos de Monsaraz a falar da escrita. "Sinto falta de conversas, longas conversas, algumas são sempre as mesmas, mas gosto de ouvir os outros. Não gosto de entrevistas; não é genuíno em mim. Estou mais interessado no que me possam ter para dizer."
Foi a falar que aprendeu quase tudo o que sabe de História de Portugal e que, sem nunca ter vivido em Lisboa, captou "a essência da cidade" de modo a poder transpô-la para o seu primeiro sucesso O Último Acto de Lisboa (1999). "A maior parte das pessoas estranham o modo como conheço Lisboa, os portugueses e a História de Portugal . Há qualçquer coisa que amo profundamente nessa cidade e não consigo perceber exactamente o que é. Escrevo sobre isso para perceber melhor."
Como escreve sobre Sevilha para lá da beleza aparente que os sevilhanos "vendem" a quem passa. " Há uma bela fachada mas por detrás da fachada há os dramas humanos. Esta é uma questão muito shakespeariana: aparência e realidade." Está na saga de Javier Falcón, essa que está a entrar na etapa final no manuscrito que tem sobre a secretária de madeira ao lado de uma foto de um beijo. O dele e Jane, no dia do casamento. "Chamei a um livro O Cego de Sevilha. É sobre ver e não ver; é sobre aparência, o que se vê e o que não se pode ver porque está escondido. é a questão básica dos meus livros", diz Wilson que confessa ter despertado para a escrita com Raymond Chandler e confessa ter ganho voz própria com o que será o quarteto de Falcón, um detective cujo carácter evolui ao longo dos quatro livros, personagem com a qual convive como se fosse uma pessoa nas horas que passa com ela fechado no escritório. Entre as seis da manhã e a hora de almoço. Todos os dias no silêncio da serra, com a cabeça em Sevilha e a reflectir sobre o mundo, atento às pessoas, que "são o que importa ao escritor". É o que acha. Ele que lê agora Javier Marías, se diz desiludido com a actual literatura inglesa e tem como herói o britânico John Banville. |