Infinitamente grande, infinitamente pequeno
Há dias, andou a Figueira em polvorosa à conta de três tubarões avistados. Toparam-nos ao largo da praia do Hospital, areal hospitaleiro, portanto, e apto ao cuidado clínico de todos quantos tenham a desdita de se cruzar no mar com os temíveis esqualos, ainda que o recontro com estes raramente seja mortal ou sequer feridente. Mas isto, claro, dizemos nós no conforto e na segurança de terra firma, pois ninguém de bom senso deseja estar na água em convívio com três tubarões crescidos. A polícia marítima não conseguiu identificar a espécie dos bichos, esperando todos que eles não sejam das classes piores e mais lesivas para nós, humanos.
De todo o modo, os tubarões, mansos ou bravos, são seres extraordinários, absolutamente extraordinários - e nós, humanos, deveríamos ter vergonha e nojo do tratamento que lhes damos, da forma bárbara como amiúde os matamos, às vezes sem razão alguma, só por maldade. Pensemos, por exemplo, numa máquina chamada Somniosus microcephalus. Ou, se preferirem, Squalus squatina, outro dos seus muitos nomes, a que poderíamos acrescentar epítetos graciosos como Somniosus brevipinna, Squalus borealis, Scymnus gunneri, Scymnus glacialis, Scymnus micropterus ou até, imagine-se, Leodon echinatum. Para simplificar, chamemos-lhe tubarão-boreal ou tubarão-da-groenlândia.
Há um poema famoso de William Blake sobre o tigre, mil vezes glosado e citado, que diz assim, numa tradução possível:
Tigre, tigre, viva chama
Que as florestas da noite inflama,
Que olho ou mão imortal podia
Traçar-te a horrível simetria?
Poderíamos dizer exactamente o mesmo do tubarão-boreal: que mãos, que deuses, terão concebido e feito um animal assim? No ano passado, numa breve nota saída na London Review of Books, Katherine Rundell lembrava factos tão assombrosos como a sua longevidade: um tubarão-boreal pode viver 500 ou 600 anos. Quer dizer, há tubarões-boreais a navegar pelos fundos da Groenlândia que já por lá andavam quando os portugueses foram às Índias ou ao Brasil, isto é, partilharam os mares com Vasco da Gama ou com Pedro Álvares Cabral. Os seus pais foram contemporâneos de Dante, os trisavós viveram no tempo de Júlio César. Muitos dos tubarões-boreais hoje vivos passaram incólumes a gripe espanhola, que em terra vitimou 100 milhões de humanos, atravessaram a Grande Guerra, com 20 milhões de mortes, e a Segunda, a de 1939-1945, em que chacinámos 70 a 85 milhões dos nossos semelhantes. Quem é o bicho, quem é o homem?
A profundidade ajuda. Um tubarão-boreal vive 2200 metros abaixo da superfície das águas. Qualquer coisa como seis Torres Eiffel de profundidade, uma distância segura em relação aos homens e à sua pulsão destruidora. Ou talvez não. Num passado não muito distante, os seres humanos chegaram a matar mais de 30 mil tubarões-boreais por ano, uma carnificina completa, que colocou esta espécie no limiar da extinção. É que os tubarões-boreais são lentos, velhos e lentos: uma fêmea só atinge a maturidade para procriar por volta dos 150 anos e um macho só começa a acasalar aos 100 anos, não me perguntem como. Matá-los antes disso é aniquilar qualquer possibilidade de reprodução.
Velhos e lentos, majestosos, tudo neles obedece a um ritmo que não é o nosso, nem sequer o dos outros tubarões. Enquanto um tubarão "normal", digamos assim, é capaz de nadar cinco milhas por hora, a uma velocidade igual ao mais rápido dos nadadores olímpicos (e, obviamente, durante muito mais tempo do que estes), um tubarão-boreal desloca-se, na melhor das hipóteses, a umas vagarosas duas milhas/hora. Até hoje, a nossa ciência foi incapaz de explicar tal lentidão, a maior de todos os peixes daquela envergadura. Dizem que ela tem que ver com o estranhíssimo metabolismo dos tubarões-boreais, que é, ao cabo e ao resto, a razão de ser da sua formidável resistência ou, como agora se diz, da sua resiliência: um tubarão-boreal, com 200 quilos, não precisa de mais do que da energia idêntica à de uma barra de chocolate por dia para sobreviver - e para navegar e se aquecer em águas gélidas, a mais de dois quilómetros de profundidade. Espantoso, não?
Agora, o tamanho: os tubarões-boreais mais avantajados chegam a alcançar os sete metros e a pesar mais de uma tonelada e meia. Uns monstros. Esperemos que nunca se aproximem dos pacatos areais da Figueira da Foz, mas, com o aquecimento global e a escassez de peixe, não é descabido supor que, um dia destes, em Portugal, um surfista mais afoito ou um turista de Inverno irá dar de caras com um tubarão-boreal a mirá-lo, de alto a baixo.
Espanta o pouco, quase nada, que sabemos deles. Nunca ninguém os viu a acasalar, a dar à luz, nem mesmo a caçar. Elusivos e esquivos, é ainda hoje um mistério como são capazes de capturar as focas, muito mais rápidas do que eles. Há quem diga que as caçam quando elas estão a dormir, pois as focas, sendo focas, adormecem profundamente, de olhos todos fechados, com as duas metades do cérebro apagadas, adormecidas, naquilo a que se chama "sonho bilateral simétrico", uma delícia onírica, decerto, mas que as deixa especialmente vulneráveis à predação alheia. Nas entranhas de alguns tubarões-boreais, contudo, já foram encontrados restos de bichos grandes, morsas, ursos-polares, alces, baleias, até o cadáver inteiro de uma rena e a perna de um infeliz humano, coitado - cuidado. Com as águas mais quentes e o pescado a rarear, não é improvável que os tubarões-boreais mudem de dieta e passem a incluir-nos no seu cardápio, mas isso não é razão nenhuma para que continuemos a matá-los de uma forma tão ignóbil e infame.
Há não muito, um norueguês maluco, Morten Strøsknes, decidiu ir em busca do tubarão-boreal, ou o que dele resta. O resultado foi um livro fascinante, Havboka, saído em Oslo em 2015 e, três anos depois, traduzido para o castelhano com o título El Libro del Mar (Barcelona, Ediciones Salamandra, 2018). Aí se conta, desde logo, que os tubarões-boreais têm um cheiro horrível, nauseabundo, devido às tremendas quantidades de ureia que trazem no lombo, essencial para que mantenham a mesma concentração de sal do oceano em que vivem, evitando que o corpo ganhe ou perca água salgada por osmose. Por isso, um ser humano não pode comer-lhe a carne; quem o fizer, fica envenenado, aturdido, aos tombos como um tonto bêbedo. Entre os povos do norte, falam de "bebedeira de tubarão" para se referirem aos incautos que o ingerem fresco e logo perdem o equilíbrio, vomitam tudo quanto têm nas tripas e tombam para o lado, inconscientes, durante horas, às vezes dias. A carne de tubarão-boreal tem uma substância, o N-óxido de trimetilamina, que a torna tóxica, a saber a urina. Os poucos que a apreciam têm de a enterrar durante meses, para fermentar, e depois de a colocar ao sol a secar outros tantos meses, ao fim dos quais se obtém o hákarl, que uns acham uma iguaria e manjar celeste, outros, a maioria, uma mistela com um odor repugnante e um sabor abominável, áspero como tudo. Não admira, pois, que os povos nórdicos, nas suas mitologias, garantam que o tubarão-boreal veio ao mundo no pote de urina de Sedna, a deusa dos mares. Mas adiante.
Sendo infinitamente grandes, de proporções colossais, os tubarões-boreais estão à mercê de um bichozinho minúsculo, um crustáceo em forma de minhoca, chamado Ommatokoita elongata, que se aloja nos seus olhos, parasitando-os, cegando-os. Uma minhoca minúscula, ridícula, é capaz de vencer e cegar um peixe de sete metros, vindo de tempos pré-históricos. Devíamos meditar nisso, nós que matamos os tubarões-boreais só para lhe extrairmos o óleo do fígado, nem sequer para o comermos ou bebermos, que é horrível, mas apenas para com ele pintarmos as casas viradas ao mar e à geada (dizem que, envernizada com óleo de tubarão-boreal, uma casa continua a brilhar como nova mesmo passados 50 anos, ou mais).
Temos sentido na pele o poder do infinitamente pequeno. O SARS-CoV-2 tem 70 milionésimos de milímetro e uma sequência genética de 12 letras. Com uma combinação de quatro letras - a, u, g, c - está escrito o texto do vírus que já matou quase cinco milhões de seres humanos, and counting. A totalidade do código genético desse vírus cabe em quatro páginas de jornal. A sua proporção em relação a um ser humano é igual à de uma galinha para todo o planeta Terra. Quando o vírus da covid-19 mata um ser humano, é o mesmo que se uma galinha tivesse destruído o mundo inteiro, desde as montanhas mais altas dos Himalaias até às profundezas abissais onde vivem os tubarões-boreais. Uma galinha, o mundo. Nunca esqueçam: um organismo de 70 milionésimos de milímetro colocou 7,7 biliões de seres humanos em alerta máximo, confinados em casa, apavorados, e de caminho atormentou governos, destruiu economias, enlouqueceu sociedades.
Quando a covid-19 surgiu, havia 47 guerras activas no planeta, e não consta que tenham diminuído. Em 2019, só no Iémen, no Afeganistão e na Síria, humanos dizimaram 73 mil humanos, provando que não precisam de vírus para se matarem uns aos outros. A pior guerra, contudo, é a que estamos a fazer ao planeta, pois ela nos liquidará todos, inocentes ou culpados. O facto de estarmos expostos a uma coisa tão pequena como o SARS-CoV-2, de uma galinha ser capaz de destruir a Terra inteira, deveria levar-nos a perceber que também nós somos minúsculos, ínfimos, ante a grandeza do mundo circundante e, sobretudo, ante a fúria com que esse mundo se irá a voltar contra nós ou, melhor, já se está a voltar contra nós. O que temos visto é só um começo, um pálido ensaio do que nos aguarda em breve, pois ela é a Terra, nós a galinha.
PS - Soube-se no passado Abril: Portugal é o 3.º país europeu, e o 12.º em termos mundiais, que mais captura tubarões e raias. Além da pesca, somos o 8.º país que mais importa carne de tubarão a nível mundial (já agora, quem anda a comer tanto tubarão?). Só em Portugal, matamos qualquer coisa como 1,5 milhões de tubarões por ano, sendo essa uma espécie essencial, absolutamente vital, para a preservação dos ecossistemas marinhos, os quais, uma vez afectados, deixarão de nos dar outros peixes, mariscos, etc. Além de crime, esta matança é estúpida, contrária aos nossos interesses. Senhores governantes, quando acabam com este crime?
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia