INEM bate picos históricos de casos e enfermeiros fazem milhares de horas extras

Até a esta altura de agosto, o INEM do Algarve está a dar uma resposta diária a 300, 350 e até mais casos, nalguns dias, quando o máximo de outros anos era de 285. O dispositivo inicial já foi reforçado com mais uma VMER e dois técnicos em motociclos para os bombeiros. Nas urgências de Portimão, as equipas de enfermagem fizeram 1691 horas extraordinárias em 27 dias de julho. E, em Faro, no mesmo mês, demitiram-se sete enfermeiros. Por tudo isto, sindicatos e presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos dizem que o balanço até agora é o de que "está pior do que nos anteriores".
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O verão vai a meio no Algarve e quem trabalha na Saúde não sabe se ainda pode piorar. Acredita que já não é possível, mas "nunca se sabe", comentam ao DN. Na área da enfermagem, "está como nunca vi antes", confessa Nuno Manjua, dirigente regional do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP). Assumindo que a expressão pode ser corriqueira ou até normal, mas "é a verdade". E explica porquê: "A rotatividade é cada vez maior. Há colegas que são contratados fazem um turno e vão-se embora, outros têm de fazer dois turnos seguidos vários dias e sem folgas e outros ainda, até com mais experiência, estão a abandonar a profissão. Dizem não aguentar mais".

No lado dos médicos, a dirigente regional da Federação Nacional dos Médicos confirma que o balanço feito em junho, aquando de uma reportagem do DN, se mantém, se não estiver pior. Para os utentes, "os tempos de espera para consultas e exames nada se alterou", continuam a ter de esperar semanas e meses "por uma consulta ou exames de diagnóstico, até mesmo nos privados, o que se consegue fazer mais rapidamente são análises, e o que está pior são os exames radiológicos para a área de ginecologia obstetrícia". Tal como na altura, a médica aponta a falta de organização e de capacidade de planeamento para a situação que se vive naquela região do país.

O DN contactou a administração do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), que integra os hospitais de Faro e de Portimão, para obter um balanço, mas a resposta foi a de que a presidente "está de férias" e que não havia ninguém disponível para falar.

No INEM, o coordenador da região, Carlos Raposo, confirma que este ano estão a bater-se recordes históricos de respostas a casos urgentes e emergentes. "Temos registado um aumento de acionamento diário de meios. O pico histórico de anos anteriores era de 285 e, nesta altura, já estamos acima dos 300, alguns dias já chegámos aos 350 e em outros até já ultrapassámos um pouco".

Números que refletem a perceção pessoal de que, neste verão, "há mais pessoas e as situações acontecem em toda a região, não só nas praias". No início de agosto, o instituto considerou ser necessário reforçar os meios disponibilizados inicialmente (32 ambulâncias e seis VMER) com mais uma VMER e dois técnicos em motociclos para os bombeiros. Mas a expectativa de Carlos Raposo é a de que o aumento de situações comece a abrandar a partir desta terceira semana de agosto e sobretudo de setembro, porque o que tem sido feito em termos de resposta deve-se ao "esforço da prata da casa, através de mais horas extraordinárias" e com o apoio de todos os parceiros do INEM, "Cruz Vermelha e bombeiros que têm sido incansáveis".

Do lado da Ordem dos Médicos, o presidente da Secção Regional do Sul, Alexandre Valentim Lourenço, vai mais longe, admitindo que a situação em toda a região sul "está pior do que no período pré-pandemia, desde os serviços de urgência, cujas falhas são as mais visíveis, até aos cuidados primários e aos serviços de internamento".

Desde janeiro até agora, saíram 11 enfermeiros do Serviço de Urgência do Hospital de Portimão, havendo outros 12 com baixas prolongadas. Destes, sete estão fora desde o início do ano e os restantes começaram a partir de maio. Os números são do SEP, que garante que quem ficou teve de fazer 1424 horas extraordinárias desde 9 de maio até 4 de junho. A partir daqui o número só tem vindo a aumentar, de 4 a 31 de julho foram feitas 1691 horas a mais e, muito provavelmente, durante o mês de agosto ainda será pior, para compensar os que chegam e se vão embora no dia seguinte ou os que estão de férias.

Nuno Manjua refere ao DN saber que para o serviço foram deslocados enfermeiros de Lagos com o objetivo de substituir alguns profissionais em falta, mas "é uma solução temporária e não chegam". A realidade é que cada vez mais, "vão e vêm. Estou cá há alguns alguns anos e nunca via uma rotatividade assim", argumenta ainda.

No serviço de urgência do Hospital de Faro a realidade não é diferente, embora, neste caso, o SEP não tenha números de horas extraordinárias para exemplificar, mas há outras situações que considera serem ilustrativas do ambiente que se vive: "Só em julho demitiram-se sete enfermeiros. Disseram-nos que não aguentavam mais", sublinha Nuno Manjua, argumentando que, não é só no período de férias que a situação não está fácil. "Não está fácil o ano inteiro. As pessoas vão e vêm. Não há nada que as faça ficar. Pelo contrário, nas reuniões que já tive este mês com profissionais do CHUA há mais a dizer que "não aguentam mais" ou que "querem outra vida"."

O dirigente sindical sustenta que nos dois últimos anos "a classe de enfermagem disponibilizou-se e chegou-se à frente até para exercer funções que não eram suas. Deu tudo para a região conseguir responder à pandemia e neste momento está exausta. Muitos colegas começaram a sair desde que terminou o estado de emergência, porque durante este período não era possível, mas durante este tempo a administração do CHUA nada fez para resolver as situações que estão por resolver".

Aliás, reforça, "há até um agravamento da situação. sobretudo pela forma como os profissionais são tratados. A instituição não só não oferece nada como só exige mais trabalho, pondo e dispondo da vida das pessoas. Há colegas que nos dizem que um dia têm um chefe a ligar-lhes e a dizer que afinal não pode folgar, como estava na escala, ou então que fica em casa e a dever horas ao hospital. E isto não é discutido nem negociado. É imposto, como se os profissionais não tivessem vida pessoal".

Destaquedestaque"A instituição só exige mais trabalho. Há colegas que nos dizem que um dia têm um chefe a ligar-lhes e a dizer que afinal não pode folgar, como estava na escala, ou então que fica em casa e a dever horas. Isto não é negociado. É imposto, como se os profissionais não tivessem vida pessoal".

Nuno Manjua conta ao DN que estas situações têm sido relatadas vezes sem conta por colegas de vários serviços e que muitos dos que se vão embora dizem mesmo: "Demiti-me, porque não aguento mais", o que "é bastante demonstrativo e revelador do sentimento vivido nos serviços". Outros, "acabam o turno na urgência ou num outro serviço e dizem logo que não voltam no dia seguinte, que não trabalham naquelas condições. Há quem diga mesmo: 'Não trabalho num local onde não sei a que horas saio'".

Isto porque, "há falta de pessoal, e, às vezes, não há sequer o número suficiente de enfermeiros para o turno seguinte, quem está a trabalhar é obrigado a seguir o turno e faz 16 horas seguidas. Uma coisa é fazer isto esporadicamente, outra é fazer sistematicamente. Ninguém aguenta", argumentando: "O encerramento das urgências em Portimão e em Faro tem sido pela falta de médicos, mas quem está nos serviços de internamento e quem cuida dos doentes 24 sobre 24 horas são os enfermeiros, que não podem mandá-los para casa. E não havendo pessoal quem lá está acaba por ficar até quando é preciso".

O SEP estima que na região algarvia faltam cerca de 500 enfermeiros, 350 no CHUA e 150 nos cuidados primários. Segundo Nuno Manjua, "a administração do CHUA até pode dizer que tem contratado enfermeiros ou que não há sequer enfermeiros para contratar, mas mais importante do que contratar é fixar as pessoas. E, até agora, a abertura da administração para conseguir isto tem sido zero. Por exemplo, há colegas que foram contratados no âmbito do covid e cujos vínculos ainda nem sequer estão regularizados. As pessoas fartam-se e vão-se embora, não esperam eternamente".

O dirigente diz que a atitude da administração do CHUA e da ARS Algarve tem sido "tão negativa que nunca reuniram com o sindicato para tentar resolver alguns problemas". Portanto, e como diz, "o balanço é que este ano está tudo pior do que na pré-pandemia. As pessoas estão exaustas e não aceitam mais certas condições. Parece que ninguém percebe isso".

No lado dos médicos, o sentimento não é muito diferente. "As coisas estão más no Algarve, mas este é o estado normal", mesmo fora da época balnear, confirma Margarida Agostinho, da FNAM. Na medicina geral e familiar, "os médicos continuam a sair para a reforma e os concursos só trouxeram colegas para as zonas carenciadas, não se consegue ninguém para trabalhar nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), porque pagam muito mal, e nem se consegue fixar ninguém",. Mas isto também, segundo considera a médica, porque não tem havido capacidade das entidades competentes, nomeadamente da ARS, para "resolver as situações".

O presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos diz mesmo que, em relação ao Algarve, há mais de 30 anos que se sabe que "a afluência aumenta nesta altura do ano e que há sempre mais acidentes, quedas, traumatismos e necessidade de dar resposta a estas situações, pelo que deve haver um reforço de profissionais", recordando mesmo que tal "já chegou a acontecer. Houve anos em que hospitais do Norte e mesmo da região de Lisboa podiam dispensar médicos que iam reforçar as equipas do Algarve, sobretudo na área da ortopedia e da cirurgia, agora já não é possível porque os próprios hospitais de base estão mais carentes".

Por isto concorda também que, em termos de balanço, "este ano está pior do que no período pré-pandemia. Nos últimos dois anos estivemos a tratar a covid e esquecemos os problemas que sempre assolaram o SNS nos últimos dez anos. E agora temos mais doentes e mais doenças para tratar e em estado mais grave, o que obriga a um esforço muito grande". Acrescentando: "A Sr.ª ministra está sempre a falar da retoma pós-covid, mas esta não consegue arrancar, simplesmente porque temos menos capacidade do que tínhamos antes da covid. Isto tem a ver com uma questão de planeamento, de reforço de verbas, de estruturas e de melhor organização de serviços. A tutela nada fez nesta fase para o corrigir e, neste momento, está a correr atrás do prejuízo. E quando se tem de tomar decisões sob pressão, muitas vezes não são as melhores decisões".

Destaquedestaque"A Sr.ª ministra está sempre a falar da retoma pós-covid, mas esta não arranca porque temos menos capacidade do que tínhamos antes da covid. Isto tem a ver com uma questão de planeamento, de reforço de verbas, de estruturas e de melhor organização de serviços."

O presidente da Secção Regional do Sul alerta ainda para o que considera serem dois grandes problemas na disfunção do SNS, nomeadamente nos serviços de urgências hospitalares: "A organização que não existe nos cuidados primários. Os centros de saúde e os médicos de família vivem uma grave crise e cada vez mais, em vez de termos mais utentes com médicos, temos mais utentes sem médico. Se há três ou quatro anos tínhamos entre 400 a 500 mil utentes sem médico de família, agora temos 1,3 milhões, o que é muito grave e é uma das principais disfunções do sistema".

Alexandre Valentim Lourenço explica: "Estamos a formar mais médicos de família do que alguma vez aconteceu. Este ano, vão abrir 550 vagas para o internato da especialidade, e se contabilizarmos um rácio de 1900 utentes por médico, isto faria com que um milhão de utentes tivessem médico, mas é preciso conseguirmos retê-los no SNS". A questão "é que há uma total incapacidade para o fazer e os profissionais procuram alternativas mais calmas e aliciantes".

O segundo problema "tem a ver com a sobrelotação dos serviços de Medicina Interna. Todos os serviços que conheço na Região Sul do país estão em sobrecarga, muitos deles porque têm internados doentes que deveriam estar noutras instituições", argumentando de que "há cálculos de que alguns hospitais têm nos seus serviços cerca de 30% de doentes que já tiveram alta clínica e que não saem por não terem para onde ir. É por isto que vemos urgências com doentes em macas que esperam uma vaga no internamento. Esta é também uma disfunção que tem de ser corrigida".

O médico refere que em todo o país há 2800 especialistas em Medicina Interna, e sendo esta uma das especialidades mais sobrecarregada nas urgências, há cada vez mais profissionais "a fugir para outras funções, para os cuidados intensivos, medicina trabalho e até para outras áreas". É mais uma situação que tem de ser corrigida.

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