Inéditos para descobrir Herberto Helder pessoa

São 200 páginas de textos com a aventura africana e que ajudam a elaborar a biografia do autor que não se queria transparente.
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"Um meu amigo garante que o universo de Dostoiévsky seria outro se no tempo dele houvesse telefones." Esta é a primeira frase da crónica que Herberto Helder escreveu para o Notícia - Semanário Ilustrado, uma das muitas em que o volume em minúsculas - crónicas e reportagens de Herberto Helder em Angola permite aos leitores descobrir em textos inéditos uma voz bem diferente da da poesia.

Também o filho, Daniel Oliveira, revela no prefácio que "nunca lera" estes textos, mesmo que os soubesse escritos. O prefaciador faz o enquadramento a uma seleção de crónicas e reportagens desconhecidas para quase todos os seus leitores e recorda que "nem tinha dois anos quando o meu pai, cultor do amor mas não da família quotidiana, partiu para África, a quem julgava pertencer o futuro". Assim sendo, diz, "reconheço o homem". É o que acontecerá aos leitores.

Voltemos a Dostoiévsky, pois tal como a visão do escritor russo é fruto de uma época, também Herberto Helder revela a do seu tempo nestes vários escritos, muito menos depurados do que a poesia que irá criar até ao fim da vida, mas clarificadores do seu pensamento sobre o mundo e a realidade em que vive nesse início dos anos 70.

A aventura africana ainda não ficará contada por inteiro pois, avisa uma nota inicial, não ficou coligida a totalidade das colaborações. O que fica registado diz respeito à produção entre abril de 1971 e junho de 1972, assinada tanto por Herberto Helder como por Luís Bernardes, sendo reproduzidas sem a reportagem fotográfica original que as acompanhava. Mesmo assim, entende-se o cenário testemunhal do poeta que Daniel Oliveira refere no prefácio: "Suspeito que o jornalista Herberto Helder (ou Luís Bernardes) se dedicou, como o guarda do Mercado de São Paulo de que fala numa reportagem, a uma "vida de ver". (...) Como nos explica numa das crónicas, de todos os talentos que admirava em Almada Negreiros, o que mais invejava era "o de nada fazer"."

Não deixa o prefácio de informar o leitor que "este livro não permite apenas conhecer uma faceta menos obscura, e por isso menos comum, em Herberto Helder. Permite acompanhar a sua curta mas marcante experiência africana" e "fica assim mais fácil acompanhar a adaptação - ou a crescente inadaptação - de Herberto ao ofício e a descoberta que foi fazendo de África", a que não escapa uma "crítica política e social que vai surgindo no retrato que faz de Luanda".

O segundo texto de em minúsculas baliza o modo como Herberto Helder pretende escrever: "[Alberto Moravia] reivindicava para as suas crónicas um estilo implacavelmente narrativo e direto, conforme convinha à própria dignidade dos acontecimentos. A secura seria o seu privilégio. Também era preciso sabê-lo ler. Sabia-se, e com isso ganhavam os jornais e os leitores que, por acaso, o que queriam era compreender."

O que surgia nas reportagens eram histórias de todos os géneros, desde a vigarice a que um português fora sujeito na compra de um automóvel Mercedes e que tinha entregue ao Notícia um dossiê completo do seu infortúnio, como as "catástrofes aquáticas" que a chuva provocava em Luanda, texto em que destaca o aviso LUANDA DESFAZ-SE com um final LUANDA SE DESFEZ.

Há diálogos com jovens, como o de uma criança de 5 anos, em que aproveita para introduzir Fernando Pessoa e o que este dizia sobre a infância: "Fui feliz? Fui-o outrora agora." Ou para questionar a "pedagogia" na relação com os mais novos, bem como à "sua alta vocação criminal", já que o "seu índice de agressividade mostra-se assustador (veja-se, a respeito, o Dr. Freud". Não deixa de registar outras críticas, como ao cantor João Maria Tudela, que se tornara "cantor de intervenção" e "vai aos poetas que também intervêm e saca-lhes os poemas deles. Intervinha com o José Gomes Ferreira e o António Gedeão", aproveitando o episódio para falar do programa de TV famoso, Zip-Zip, durante uma entrevista que faz ao fadista Carlos do Carmo que estava em Luanda para dar espetáculos.

A questão jornalismo não está ausente: "Rebentam mais críticos por aí do que repolhos nas hortas - coisa má para as cozinhas e para a imprensa. Se as redações fossem dar ouvidos aos exteriores, não conseguiam fazer nada." Ou o facto de Nambuangongo ser "um lugar masculino" porque "não há mulheres" e, consequentemente, "não existem crianças". Também não deixa de avaliar o grande acontecimento cultural, o V Salão de Arte Moderna, sobre o qual escreve ser "execrável" e que conta com um "júri completamente malsão" que encerra a pintura num salão quando "toda a gente sabe que a pintura acabou há muito tempo".

Ainda o em minúsculas não chegou a meio e o cronista trata do que muito lhe interessa, a literatura. Em que se autorretrata: "Na redação do Notícia, passava-se algo de alarmante. O redator, na hora de serviço, entregava-se devassamente a leituras." Para o amante do poeta este é um livro muito perigoso, afinal levanta bastante da cortina que resguardava Herberto Helder.

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